A Editora Mulheres
Zahidé Lupinacci Muzart
(1939-2015)
Depoimento apresentado na mesa-redonda Aventuras Editoriais II, com os editores
Plínio Martins Filho (Edusp / Ateliê Editorial, SP), Cláudio Giordano (Editora Giordano / Oficina do Livro, SP),
Cléber Teixeira (Editora Noa Noa, Florianópolis), Dorothée de Bruchard (Escritório do Livro, mediadora).
Florianópolis, CCE - UFSC, 30 de maio de 2003.
Não é muito fácil referir a história de algo que ainda se está fazendo. Acho que seria muito mais fácil se já estivesse morta e escrevesse... ao jeito de Brás Cubas! Esta é a segunda mesa-redonda para a qual me convidam no espaço de um ano, e, mais uma vez, me obrigam a mergulhar no passado... Mas, sorte minha!, concluí que, ao contrário do que pensava, não deixa de ser prazeroso fazer um balanço do que se realizou. Ainda que nisso haja alguma coisa de melancólico: porque também concluí que o que se deixou de fazer até agora creio que por certo não será feito. É que não há mais tempo. E que muitíssimo ficou por fazer!...
Quando me aposentei tinha oito orientandas de mestrado e um projeto de resgate de escritoras do século XIX, patrocinado pelo CNPq. Continuei, por isso, muito ligada à Pós-graduação na UFSC. No início da pesquisa, era voz corrente de que aquelas mulheres nada tinham escrito, e, por conseguinte, menos ainda publicado enquanto viveram. Logo ficou claro, porém, que, na verdade, não só escreveram e publicaram uma grande quantidade de textos, mas, bem mais que isso, que esses textos constituíam um legado de boa qualidade literária e de valor histórico inquestionável. Tudo ficou ainda mais evidente, quando descobri que de nada adiantaria apenas revelar os nomes dessas escritoras, os pormenores de suas vidas, relacionar o que escreveram. Era fundamental republicá-las hoje. E, a partir dos primeiros resultados da linha de pesquisa e do projeto que, surgiu, de repente, a idéia de criar uma editora cuja finalidade seria realizar um projeto de resgate isto é, reeditar os livros das escritoras do passado, fossem elas brasileiras ou não.
Foi, então, que duas outras professoras igualmente aposentadas da UFSC, Elvira Sponholz e Susana Funck, que partilhavam idênticos interesses de pesquisa e os mesmos interesse editoriais, se uniram a mim, com o propósito de fundar uma casa editora, a que chamaríamos Editora Mulheres. Desta forma, em 1995, ela nasceu, mas só começou a funcionar de verdade, quando foi preparado, editado e lançado o primeiro livro, o que ocorreu em outubro em 1996. Como puderam ver, tratava-se de um projeto muito bem definido e a editora já nascera diretamente vinculada a uma linha de investigação científica muito definida, Literatura e Mulher, decorrente de nossa afiliação a um grupo de pesquisa sobre as escritoras do passado, um assunto que coincidia plenamente com o nosso campo de interesse.
Acontece com qualquer um que ponha seu empenho na história literária das mulheres brasileiras no século XIX, começa por enfrentar problemas. O primeiro é a quase inexistência de re-edições, sempre raras porque vendem muito pouco ou porque os textos de mulheres se perdem, desaparecem ao longo dos anos. Cabe à nossa editora, então, realizar a tarefa de recuperar essas obras dispersas, de ressuscitar tais “velharias”...
Cada livro é uma aventura. Os resultados muitas vezes não nos dão a alegria presumida, porque saíram aquém do sonhado. Lutamos sempre com as gráficas, as livrarias, com os distribuidores ladrões! Lutamos com a constante falta de dinheiro, porém muito mais com a permanente falta de respeito. Há sempre um sorriso condescendente para com uma microeditora que se chama Mulheres e ainda por cima dirigida por aposentadas, como tudo se resumisse em uma atividade terapêutica de terceira idade! Ora, pois...
Foi o Mulheres illustres do Brazil, uma obra que Inês Sabino escreveu e logrou editar em 1899, o primeiro livro da Editora Mulheres. Este livro já veio com um erro... Ainda que fosse uma edição fac-similar, como na verdade era, na hora de imprimir e montar, foi trocada a página de rosto pela falsa página de rosto... Quando o livro chegou, verificamos o engano, mas já era tarde. Outro problema, menos grave, foi o fato de trazer orelha duplicada. O livro tem uma sobrecapa, em cuja dobra foi impresso o texto das orelhas, Só que a capa, por sua vez, repete tudo também, isto é, veio com dobra e nela se imprimiu igualmente o texto destinado às orelhas. Isso foi um erro da gráfica, mas achamos melhor deixar assim mesmo para não corrermos o risco de ficar pior...
Nestes inícios, tudo na editora era muitíssimo artesanal — creio que ainda o é... Líamos o livro proposto, revisávamos a digitação, realizávamos a editoração. Escrevíamos a orelha, escolhíamos a ilustração da capa. E tudo isto num ambiente de muita camaradagem.
O segundo livro foi a prova de fogo. Foi A Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida, editado em 1913, e, por isto, precisava ser atualizado. É comum pensar que atualização ortográfica é coisa fácil, muito óbvia e corriqueira. Pois não é... E, a duras penas, nós o descobrimos com este livro. Os problemas são variados, pois tudo depende da época e do autor. Afinal, deveríamos deixar letra minúscula depois de ponto de exclamação? E a pontuação da autora deveria ser preservada? Deve-se deixar o sujeito separado do verbo por pontuação em conformidade com um texto original? Deixaríamos assim? E as notas do preparador: deveriam ser incluídas? Não iriam chatear o leitor, afinal trata-se de um romance, uma obra para ser fruída... E as palavras e expressões em outro idioma, sobretudo o francês? Se um romance é de época, um romance da Belle-Epoque, por exemplo, traz muitas palavras nessa língua. Aí começamos a procurar e a ler obras técnicas de vários autores, alguns também editores, como Antônio Houaiss, a consultar edições críticas como as da Comissão Machado de Assis, a de Cleonice Berardinelli e as da Coleção Archives. Em suma, todas essas dúvidas e soluções nos educaram um pouco para os livros subseqüentes. Nada, porém, é definitivo: cada livro apresenta seus próprios problemas e nos obriga a novas pesquisas, a outras consultas, e muita leitura de obras especializadas e de referência diferentes das anteriores.
Descobrimos, ao longo desses anos, muitas coisas mas o que devo destacar foi descobrir a enorme importância de uma boa revisão, o valor da revisão, coisa que, mesmo tendo trabalhado muitos anos com a revista Travessia (UFSC), não havia realmente introjetado. Quem vê um bonito livro na livraria nem imagina por quantas leituras passou. É a leitura da descoberta e conseqüente escolha do livro a ser editado, é a leitura da digitação, a leitura da editoração, a leitura da cópia da gráfica. Tudo extremamente demorado, e, apesar disso, sempre haverá algo a fazer, porque uma revisão tem de passar por, no mínimo, três pessoas! E nem sempre podemos remunerar o trabalho desse pessoal todo. Assim, acabei descobrindo o valor da revisão. Acho, hoje em dia, que uma boa editora pode ser avaliada em muitos de seus aspectos, muitas particularidades, vários pormenores, mas esta questão não só se avulta, porém deve ser considerada primordial nessa avaliação. Ela chega a ser uma verdadeira tortura para o editor...
Cada livro da Editora Mulheres tem uma história de erros e acertos, de amizade e de companheirismo. Escolhi como exemplo sobre que falar aqui, apenas um, o Diário de viagem da baronesa de Langsdorff. Quem primeiro analisou esta narrativa foi Miriam Moreira Leite, nos anos 80, num artigo em que comenta os livros de mulheres viajantes no século XIX. Desde então fiquei curiosa e estimulada para ler esses relatos de viagem. Por isso, escrevi há anos ao bibliófilo paulista José Mindlin mencionando o assunto e ele me fez a gentileza de enviar, em microfilmes, alguns desses textos, entre os quais o da baronesa de Langsdorff. Lancei-me à aventura da edição e — surpresa! — faltava uma página do livro. Este fora editado, na França, por uma sociedade de Lobos do Mar (marinheiros) da qual não havia indicação de endereço ou telefone. Escrevi ao Dr. Mindlin e a resposta foi decepcionante. Estava assim no original. Fazer o quê? Uma lição se impõe: nunca desistir. Escrevi à cata de outro exemplar da obra para a Biblioteca Nacional. Não havia; para a Mário de Andrade, também não. Aí me ocorreu escrever à “metrópole”, que tem tudo. Dito e feito, consegui em uma biblioteca de Illinois, por intermédio de professora brasilianista, finalmente, a página almejada! Depois disso, começaram as agruras das revisões. E foram várias leituras, vários confrontos... Como o livro foi editado na França em 1954 e tinha copyright, tive de procurar a Associação Les Amis des Musées de la Marine.
Segundo Miriam Moreira Leite na apresentação do livro,
Os exemplares do seu diário, tanto o da Biblioteca Rubens Borba de Moraes-José Mindlin, quanto o da Biblioteca do Itamarati, no Rio de Janeiro, são cópias de qualidade irregular, publicadas cento e onze anos após ter sido escrito, pelos Amigos dos Museus da Marinha, interessados pelas narrativas dos últimos tempos da navegação a vela.
Victorine Emilie, futura baronesa de Langsdorff, era uma das três filhas dos condes de Sainte Aulaire. Nasceu em 1812 e casou-se em 1834 com seu primo, Emile, barão de Langsdorff. O barão de Langsdorff (1804-1867) entrou em 1827 para o ministério francês dos Negócios Estrangeiros. Foi adido em várias legações e ministro plenipotenciário em Haia, em 1849. Antes de representar a França em outros países, foi-lhe confiada uma missão delicada. Em 27 de outubro de 1841, o Rei dos Franceses acreditou-o junto à corte imperial do Brasil. Ele ali deveria preparar o caminho para o casamento muito desejado pelas Tulherias, de François d'Orléans, príncipe de Joinville, com a princesa Francisca de Bragança, irmã de D. Pedro II. O temperamento independente do príncipe não facilitava a tarefa e poderia trazer surpresas. A que aconteceu — e foi realmente uma surpresa — não decepcionou ninguém. A baronesa de Langsdorff, não se duvide, teve parte direta no sucesso da missão. A narrativa de sua viagem ao Brasil é uma página colorida e também uma página da História é parte do Diário da baronesa. Esse Diário, começado com a idade de 15 anos, a conselho de seu pai, foi redigido por ela durante toda a sua vida.
Há uma progressão nítida na visão da baronesa desde sua chegada ao Brasil, olhando a tudo e a todos, um pouco com o que Mary Pratt chama de “olhos imperiais”. Suas interrogações e perplexidades são as de uma européia branca, culta e nobre. Mas, ao final de quase um ano, há uma virada com a sua relativa “adoção” do país e de seus habitantes, o que transparece na defesa dos hábitos da princesa dona Francisca e na crítica aos franceses, em Brest. Ao final do livro, ela parece ver com os olhos brasileiros de Francisca e não mais com o olhar puramente francês. Da leitura desse interessante diário, destacam-se sobretudo as qualidades da própria baronesa, das quais a mais importante é a busca de autenticidade nas relações que trava e no afeto que permeia todos os seus contatos. Trata-se, por isso, de uma história diferente, perpassada por um olhar irônico e crítico mas cheio de humanidade e doçura.
Este livro, apesar dos problemas que colocou por ser tradução, e traduções são sempre uma fonte de correções infinitas, foi um dos que muito nos interessou como editora. E nos fez ter um diálogo com várias pessoas tais como bibliófilos, estudantes francesas que descobriram o retrato da Baronesa, um desenho do navio do príncipe, a fragata La Belle Poule. Enfim, foi um trabalho a muitas mãos e muito prazeroso.
Não posso concluir sem falar do quanto a editora é devedora de muitas pessoas mas principalmente dos bibliófilos. De José Mindlin, recebi a cópia dos livros de viajantes estrangeiras no século XIX e editei dois livros, O Diário da Baronesa de Langsdorff e a narrativa da viagem de uma senhora belga que, já com 60 anos, impulsionada pela paixão de conhecer uma floresta virgem, vem para o Brasil para uma colônia belga no Rio Grande do Sul. Sobre este livro, haveria coisas a contar, como o conhecimento de descendentes da senhora belga, em São Paulo. Do biliófilo catarinense Iaponan Soares, devo a doação de praticamente todos os livros de Júlia Lopes de Almeida de que já editamos três e temos outros em preparo e de todos os livros de Ibrantina Cardona. A cada visita em sebos, Iaponan me conseguia um livro... Do bibliófilo paulista Erick Gemeinder, devo inúmeros livros e informações preciosas sobre as escritoras do século XIX. Ele me tem enviado cópias de alguns livros mas também primeiras edições, raríssimas, como os livros de Júlia Cortines. Mas há um bibliófilo que me foi muito caro, o gaúcho Júlio H. Petersen que, falecido em 2002, aos 80 e poucos anos, possuía uma biblioteca especializada no Rio Grande do Sul. Ele me emprestava suas primeiras edições e as enviava por sedex sem data para retorno. Eu ficava com os livros até o natal. No natal, os livros, tal como os bons filhos, à casa retornavam... Esta nossa troca durou muitos anos, bem antes da criação da editora. Escrevia-me cartas iniciando sempre com a expressão do gaúcho de fronteira “Salud y plata” e ao final enviava um “abraço quebra-costelas ao Iaponan Soares”. Quando editei o livro Sorrisos e prantos, foi a partir da primeira edição que pudemos cotejar o texto e corrigir inúmeros equívocos da primeira edição.
Voltando às aventuras editoriais, gostaria de concluir com uma observação que é de Jason Epstein (in O negócio do livro):
O editor é antes de tudo um leitor. Por isso, um editor que não lê os livros que edita, não se pode considerar editor. A paixão do editor não é o resultado financeiro, mas a aventura cujo resultado é uma espécie de júbilo diante de cada livro bem sucedido.
É nisto que também acredito e é isto que tento fazer no dia-a-dia da editora.
© Zahidé Lupinacci Muzart, 2003.
Texto gentilmente cedido pela autora.
Imagem: Escritório do Livro