Pedro da Silva Quaresma

entre estrangeiros, um brasileiro editor

Lívio Lima de Oliveira


Rio de Janeiro, Vista do Largo de S. Francisco, 1895. Foto de Marc Ferrez.

Por mais de meio século, o Rio foi a capital das letras brasileiras. Na segunda metade do século XIX, localizava-se na Rua do Ouvidor o maior número de lojas que comercializavam os artigos europeus de luxo e as últimas novidades do Velho Mundo. Era a “vitrine civilizada” da cidade. Assim, acabou transformando-se em ponto de encontro da elite que a adotara como um espaço comum associado à cultura européia. Desde os políticos da recém-proclamada República que, tendo ou não estado nas reuniões de cúpula da Câmara ou do Senado, passavam por lá para desfilar sua influência e sua cultura. E lá estavam as casas certas para isso: as livrarias e redações de jornais que formavam a roda literária.

As livrarias eram os pontos de encontro dos principais literatos. Coincidentemente, algumas também funcionavam como editoras, embora ser editado por elas não fosse tarefa fácil. Nesta época, a vida literária passava por outro meio de comunicação mais forte e mais acessível: o jornal. Era onde essas pessoas conseguiam escrever no começo de suas carreiras. E só depois de consagrados nos periódicos é que tentavam ter seus livros editados pelas grandes livrarias.

Existiam outras formas de ter seu livro editado. Uma delas era enviar os originais diretamente à Europa (sobretudo Portugal e França) e sujeitar-se a regras ditadas por esses editores estrangeiros que, em geral, aproveitavam-se dos escritores e de suas obras, não pagando, sequer, os direitos autorais. Outra forma era escrever (sob pseudônimo) obras de apelo mais popular (como fizeram o jornalista Alberto Figueiredo Pimentel e tantos outros).

Numa época em que o comércio de livros era dominado por estrangeiros: Garnier (francês), Francisco Alves (português), os Laemmert (alemães), sem contar os outros franceses, belgas e ingleses instalados na capital da República, surge o fluminense Pedro da Silva Quaresma. Compra de Serafim José Alves, em 1879, a Livraria do Povo, que estava instalada na mesma rua onde morava: Rua São José. Por muito tempo adotou o nome antigo da livraria, mas como todos a designassem pelo nome do proprietário acabou mudando para Livraria Quaresma. Entrou, assim, para o mercado livreiro, no qual permaneceu por uns cinqüenta anos como único livreiro brasileiro. A partir daí, outras figuras começaram a se destacar no ramo.

Quaresma sentiu que existia um público-alvo a ser conquistado — o da população comum, semi-letrada, que estava sendo sumariamente ignorada pelas demais livrarias-editoras. Chegou à conclusão que a única maneira de propiciar-lhes contato com o livro era fornecer-lhes livros de leitura fácil, amena e prática. Propõe, então, um livro de cunho popular, de formato reduzido (o que hoje chamamos de pocket book) e, acima de tudo, a um preço acessível. Estas eram as principais características do que se designou “edições Quaresma”. Estas edições formavam várias coleções, cujos livros eram escritos por “alguns escritores de terceira categoria” e que Quaresma “espalhava, com grande êxito, por todos os cantos do Brasil. Em qualquer velha residência lá pelos sertões da Bahia ou pelo norte de Minas ainda é fácil descobrir-se até hoje, num canto de gaveta, algumas dessas 'edições Quaresma'”, afirma Brito Broca. Para o editor, a partir dessa leitura, o público encontrava um forte elemento que poderia atraí-lo para leituras mais densas.

Uma das revelações de Quaresma foi o poeta Catulo da Paixão Cearense que, antes de conseguir consagração no mundo literário, com Meu sertão, sertão em flor e outras obras, escreveu para as “edições Quaresma” vários livros de modinhas e canções que formavam uma coleção chamada “Bibliotheca dos Trovadores”. Alguns dos títulos que faziam parte da coleção: Cancioneiro popular, Florilégio dos cantores, Lyra Brasileira, Choros de violão, Trovador moderno, Trovador marítimo, Cantor de modinhas, Lyra de Apollo, Lyra Popular, Trovador de Esquina, Serenatas, entre outros. O autor renegou posteriormente essas obras e passou a ser editado pela livraria Castilho, já com um caráter mais sério.

Capa de uma edição de Modinhas brasileiras
de Eduardo Neves, 1927.

Seguindo esta mesma linha musical, Quaresma publicou os livros de modinhas de Eduardo das Neves, figura bastante popular que costumava fazer canções de acordo com os acontecimentos do dia ou datas festivas. Só esta coleção despertou a atenção de uma freguesia numerosa, como anota bem Luiz Edmundo no seu O Rio de Janeiro do meu tempo:

No começo do seculo não há seresteiro cantador de violão que não procure a bibliographia do Quaresma para refrescar seu repertório. [...] Por vezes a loja enche-se de rapazellos de calças abombachadas, grandes cabelleiras, lenço no pescoço e chapéo desabado, pardavacos, negros creoulos, brancos, amadores de assumpto, em bandos rumorosos, desbastando pilhas de brochuras, a perguntar em que livro saiu o Perdão Emilia [...] ou quando deve sair a nova edição do Trovador Brasileiro, que traz a Casa Branca da Serra [...]. É toda uma freguezia perguntona, espalhafatosa, vozeiruda, que arranca notas de dois e cinco mil réis do fundo de lenços de chita, muito sujos, armados em carteiras, para comprar as brochurinhas, postas em capas de espavento, não raro aos empurrões, aos gritos, o violão debaixo do braço, ou experimentando flautas, oboés, cavaquinho... [...] é toda uma legião de cantores, de seresteiros, de sereneiros, a flôr da vagabundagem carioca, essencia, sumo, nata da ralé, roçando não raro, a sobrecasaca do Conselheiro Ruy [Rui Barbosa], a importancia do sr. José Verissimo, a sisudez do sr. Candido de Oliveira, a jurisprudencia do sr. dr. Coelho Rodrigues...

Mas Quaresma também tinha fregueses ilustres, entre eles, Machado de Assis, que sempre passava por sua livraria antes de ir para o Ministério da Viação. E o livreiro propaga uma certa opinião de Machado acerca de sua casa: “— Sabe? Gosto mais de sua casa, porque é silenciosa, não há aquele zum-zum da Garnier...”. Rui Barbosa era outro assíduo frequentador da casa e sua chegada também causava frisson nos demais clientes. O gerente da casa, o português José de Mattos, sempre estava a lhe oferecer novidades: “— E isto aqui v. ex. já viu, sr. Conselheiro?”. E ele respondia: “— Isso, José, já tenho. Vocês marcaram mal o volume. Como preço, é exorbitante! Os catalogos inglezes não pedem nem a metade pela primeira edição, que traz, no entanto, até as estampas a côres. Diga ao Quaresma para remarcar isto...”.

José de Mattos era um caixeiro e tanto. Além de gerenciar a casa, conhecer títulos, sugerir novidades, era figura cativa e folclórica do local. Foi inspiração dele a temática infantil e o formato reduzido dos livros.

Alguns escritores, de “categoria mais elevada”, também escreviam livros para estas coleções. Um deles era Viriato Padilha que, sob o pseudônimo de Ticho Brahe, escreveu Os roceiros e O livro dos fantasmas (coletânea de casos de assombração, aparições, fenômenos espíritas e abusões que metia medo na criançada).

Outro grande escritor que escrevia sob pseudônimo para Quaresma era Alberto Figueiredo Pimentel, o cronista social do periódico Gazeta de Notícias, em cuja seção “Binóculo” eram focalizados os fatos da sociedade carioca. Escreveu o Manual dos Namorados, que era, como conta Luiz Edmundo, “procuradissimo, revelador de uma technica admiravel em materia de seducção e amor, contendo, como se lê nos annuncios do catalogo, a melhor maneira de agradar ás moças, fazer declarações, em estilo elevado”.

A esse mesmo Figueiredo Pimentel, Quaresma encomendou uma série de livros para crianças, tornando-se, assim, o precursor da nossa literatura infantil. Este tipo de livro vinha todo de Portugal, mas, Luiz Edmundo comenta:

Até certo ponto, para nós ella [a literatura infantil] representava um contrasenso, uma vez que as differenciações entre o idioma falado nas duas patrias eram já notáveis, na época e, de tal forma que, por vezes, phrases inteiras ficavam indecifráveis para as nossas creanças: “E o petiz que andava ás cavalitas do avô vendo o marçano que trazia o cabaz pleno de molhos de feijões verdes, sae-se-lhe com esta: a mamã que t'o conte!”... Isso, era bom muito bom portuguez; mas não era nada brasileiro, tanto que as nossas creanças não entendiam, como a maioria dos textos desses mesmos livros.

Capa de uma edição das Histórias da Baratinha, 1940.

Dos livros publicados, vão, a seguir, alguns dos títulos: Histórias da Carochinha, Histórias do Arco da Velha, Histórias da avózinha, Histórias da baratinha, Os meus brinquedos, Theatro Infantil, O Álbum das creanças, entre outras. Como afirma Brito Broca, este Histórias da Carochinha, acabou fazendo com que o termo fosse incorporado ao nosso folclore, representando a imagem de “uma velha bondosa e afável a distrair os pequenos, com suas narrativas feéricas”.

E Quaresma ainda inova no que Broca chama de “publicidade moderna, à moda ianque”. Pois, “quando lançava uma edição, costumava fazer grandes cartazes com o nome do livro e mandava pregá-los por todos os pontos da cidade”.

Pedro da Silva Quaresma foi, portanto, três vezes pioneiro. Na primeira vez, como editor precursor da literatura popular, na segunda, pioneiro da literatura infantil e por último, inventor da publicidade impressa para vender seus livros.

A livraria cerrou suas portas em 1951 e a maioria destas informações são provenientes de uma entrevista que Brito Broca fez com Carlos Ribeiro, que começou a trabalhar na livraria com treze anos e lá permaneceu por mais vinte e cinco, complementando o seu colega de trabalho José de Mattos e também tornando-se figura cativa do lugar. Carlos Ribeiro também lembra que graças ao estrondoso sucesso de vendas (isso devido à impressão de altas tiragens, ao formato reduzido dos livros e aos preços acessíveis dos mesmos), Quaresma foi por muito tempo boicotado e “banido” das rodas de seus pares livreiros que, por inveja ou preconceito, não se conformavam com o sucesso do concorrente.

BIBLIOGRAFIA:

ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo, Melhoramentos, 1988.
BROCA, Brito. O repórter impenitente. Campinas, Ed. da Unicamp, 1994.
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil - 1900. Rio de Janeiro, Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura, s/d.
EDMUNDO [da Costa], Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. 3 vols. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. São Paulo, T.A.Queroz/Edusp, 1985.
NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
RIO [Paulo Barreto], João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
TORRES, Antônio. Pasquinadas Cariocas. Rio de Janeiro, Livraria Castilho, 1921.
VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura Braileira. 6ª série, Rio de Janeiro, 1907.

OBS: Todos os artigos de Brito Broca citados no texto estão em O repórter impenitente.

LÍVIO LIMA DE OLIVEIRA
é professor de Editoração na FAENAC e mestre pela ECA/USP.
Texto gentilmente cedido pelo autor.
Imagens: Escritório do Livro


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