Os tradutores na história


Andréia Guerini



RESENHA: Os Tradutores na história, de Jean Delisle
e Judith Woodsworth (orgs.). (Trad. de Sérgio Bath. SP: Ática, 1998.)





A idéia deste livro surge em 1963, durante o IV Congresso da Federação Internacional de Tradutores (FIT), tendo como objetivo inicial um projeto ambicioso, cobrindo não menos de 25 séculos e abrangendo todos os continentes e centenas de línguas na tentativa de reescrever a história do mundo através do enfoque da tradução. Georges Mounin, no seu Teoria e Storia della Traduzione (Torino, Einaudi, 1965, p. 29), já alertava para o fato de ainda não existir uma história da tradução de todos os tempos e que esta seria uma obra imensa visto que a tradução é uma atividade que sempre existiu. Porém os anos passaram-se e foi somente em 1990, no XII Congresso Mundial da FIT, em Belgrado, que a sua Comissão para a História planejou uma obra que teria um escopo mais limitado, não pretendendo ser um estudo exaustivo da história da tradução, mas um exame seletivo e temático dos principais papéis exercidos pelos tradutores ao longo do tempo. É dentro deste propósito que Os Tradutores na História proporcionam ao leitor um panorama histórico, mas não cronológico, da tradução para a evolução e o progresso da humanidade.

A presente obra é fruto de um trabalho coletivo, pois contou com a participação de vinte especialistas de várias partes do mundo, e se articula em torno de nove temas: "Os tradutores e a invenção dos alfabetos"; "os tradutores e o desenvolvimento das línguas nacionais"; "os tradutores e a emergência das literaturas nacionais"; "os tradutores e a disseminação do conhecimento"; "os tradutores e o poder"; "os tradutores e a difusão das religiões"; "os tradutores e a transmissão dos valores culturais"; "os tradutores e os dicionários" e "os intérpretes que fizeram história". A intenção principal é mostrar como a tradução contribuiu para a história intelectual e cultural da humanidade. Ao longo desses capítulos, a leitura flui, pois os autores não usam uma linguagem especializada, e quem desejar aprofundar o assunto, encontrará, ao final de cada parte, uma relação suplementar de livros, além de 36 páginas apresentando uma bibliografia seleta.

O prefácio do livro é assinado pelo presidente da FIT, Jean-François Joly, o qual sublinha a importância dessa atividade, pois, segundo ele, desde tempos imemoriais, os tradutores serviam de elos na cadeia de transmissão do conhecimento entre sociedades separadas por barreiras lingüísticas, tendo construído pontes entre nações, raças, culturas e continentes, entre o passado e o presente verificando-se que, de maneira geral, as culturas receptoras desse trabalho consideraram-se enriquecidas com o trabalho realizado pelos tradutores.

Nos primeiros três capítulos, a discussão gira em torno da influência e das contribuições do tradutor para a invenção de alfabetos, para a emergência, o enriquecimento e a promoção das línguas e literaturas nacionais, para o despertar de uma consciência coletiva de grupos étnicos e lingüísticos, para importar novas idéias e valores, além de colaborar para a preservação de uma herança cultural, estimulando a alfabetização, a evangelização e a democratização da educação. Essas contribuições estão associadas a nomes como Ulfila (evangelista dos godos), Mesrop Mashtots (armênio), Martinho Lutero (alemão) e Jorge Luis Borges (argentino). O leitor poderá verificar ainda que a tradução não aparecerá como um caso isolado, mas sempre associada a projetos de natureza social, política, ideológica e religiosa.

Nos capítulos intitulados "os tradutores e a disseminação do conhecimento"; "os tradutores e o poder"; "os tradutores e a difusão das religiões", o enfoque será dado através da atuação de alguns tradutores ou centros de tradução (Bagdá, Índia, Espanha) em relação à transmissão, criação e difusão do conhecimento em diversos campos do saber. Mas convém recordar que isso tudo só foi possível graças à invenção do papel (por volta do ano 105, na China) e da imprensa (séc. XIV), fator essencial para a difusão da tradução e conseqüentemente do desenvolvimento do conhecimento. Aliás, já no século XVI, o filósofo italiano Giordano Bruno afirmava que "a tradução assegura a descendência de toda ciência". No capítulo "Os tradutores e a difusão das religiões", vale observar que a expansão do cristianismo influenciou intensamente a tradução, pois cristianizar equivalia a traduzir e, na realidade, os textos religiosos têm sido traduzidos abundantemente. As principais traduções da Bíblia foram cruciais para a transição cultural, bem como as traduções de textos budistas na Ásia. A tradução é um elemento essencial para a maioria dos projetos de evangelização. Por isso, esse capítulo concentra o seu exame nas tradições judaica e cristã, focalizando os diferentes modos como cada uma dessas religiões considerou historicamente a tradução dos "textos sagrados". A ênfase, porém, foi dada às traduções para o inglês. Seções mais curtas também tratam da tradução dos textos sagrados islâmicos, hinduístas e budistas, ilustrando a forma como os tradutores (São Jerônimo, Lutero, William Tyndale - primeiro inglês a traduzir a Bíblia diretamente das línguas originais) ajudaram a tornar esses textos acessíveis a um público cada vez mais amplo.

No capítulo "os tradutores e a transmissão dos valores culturais" convida-se o leitor a fazer uma viagem através do tempo, passando pela Espanha do século XII, Inglaterra dos séculos XVI e XVIII, pela França do século XIX, até a China do século XX, dando-nos a oportunidade de "explorar lugares e épocas ainda não mapeados pela história da tradução". Nos capítulos "os tradutores e os dicionários" e "os intérpretes que fizeram história" temos a relação e contribuição dada pelos tradutores à criação de dicionários e ao aprimoramento dos mesmos, e um resumo sobre as várias formas assumidas pela interpretação e pelo papel histórico que alguns intérpretes desempenharam ao longo do tempo.

Podemos concluir que este livro cumpriu o objetivo estabelecido por seus organizadores Jean Deslile e Judith Woodsworth, respectivamente presidente e vice-presidente da Comissão de História da Tradução da FIT, pois é um "ponto de partida" para que se realizem estudos mais aprofundados e ótimo guia no campo da história da tradução, visto que oferece um panorama do valor que essa atividade teve e tem na Europa, América, África, Índia e China, tornando-se assim um importante material para aqueles que se dedicam aos estudos de tradução.


Andréia Guerini
é professora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC.
Resenha publicada
no Cadernos de Tradução,
do Núcleo de Tradução da UFSC, no 3, 1996.
Reproduzida com autorização da autora.



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