A contabilidade da escrita


Aníbal Bragança



RESENHA de O Preço da leitura, de Marisa Lajolo &
Regina Zilberman. (S.Paulo: Ática, 2002.)





A coruja de Minerva só alça seu vôo ao anoitecer, diz a célebre frase, que, apesar de batida, aqui se pode usar, pois evidencia a crise por que passamos na área dos livros e dos direitos autorais, tal o aumento do número de obras voltadas para questões de leitura, livros, editoras, leitores e autores, desde a maldita A Galáxia de Gutenberg, do canadense Marshall McLuhan. Maldita para uns, profética e iluminada para outros.

A obra O preço da leitura; leis e números por detrás das letras, último produto da parceria entre Marisa Lajolo, da Unicamp, e Regina Zilberman, da PUC-RS, insere-se nesse contexto de crise, mais especificamente, dos direitos autorais, tema que mais do que nunca se discute hoje, tanto na perspectiva ética, quanto jurídica e técnica. O profícuo trabalho dessas pesquisadoras tem rendido bons frutos, acadêmica e comercialmente. A presente obra prossegue uma linha de pesquisa que as autoras vêm desenvolvendo desde 1991, quando publicaram A leitura rarefeita: livro e literatura no Brasil, a que se seguiu, em 1996, A formação da leitura no Brasil.

Nelas, como também neste O preço da leitura, as autoras não escondem seu engajamento no que certamente entendem como uma luta a favor dos autores e contra a "máquina editorial", para usar a expressão de Osman Lins, autor pioneiro nesse campo, com sua tese Guerra sem testemunhas (O escritor, sua condição e a realidade social), publicada em livro na década de 1960. Desde então, autores como Antônio Luís Machado Neto, Moacir C. Lopes, Sérgio Miceli, Tânia Maria Piacentini, Jean-Yves Mérian, dentre outros, pesquisaram a questão da profissionalização do escritor no Brasil.

Lutas - O leitor que esperar encontrar em O preço da leitura referências ao preço dos livros que pretenda adquirir para ler - o título e a capa do volume induzem a essa expectativa —, certamente ficará decepcionado. Apesar de ser tema também de candente atualidade, a obra não se ocupa dele, nem do trabalho dos editores. O que nela se estuda é, sim, o preço da escrita. A obra apresenta os resultados de uma pesquisa sobre o processo de profissionalização do escritor, os embates sociais e particulares para o autor conseguir viver da sua pena, e, especialmente, as lutas pela implantação no Brasil (e em Portugal) de uma legislação protetora dos direitos de autor. Além da bibliografia, especialmente a portuguesa, utilizam-se fontes documentais, como contratos de edição, leis, recibos de prestação de serviços, correspondência, e a própria literatura, onde o tema é apresentado.

São oferecidas, também, ao leitor referências comparativas - sempre para mostrar o "atraso" de Portugal e do Brasil - com o que aconteceu nos países mais avançados (Inglaterra e França, especialmente) no processo de reconhecimento aos autores do direito de dispor de seus escritos para publicação, auferindo as vantagens morais e pecuniárias da sua propriedade.

A leitura de O preço da leitura recompensa. Não tanto pela pesquisa sobre o mundo editorial português, que é de segunda mão. Nem pelas incursões aventureiras pela história do livro, onde se cometem deslizes, como afirmar que a Europa só conheceu a manufatura do papel no século 14 ou que fazer poucas cópias de um manuscrito "inflacionava os preços, pois a matéria-prima era cara". Nem por uma pretensa história da autoria, que desconhece a diferença entre o lugar e a função social de um autor na Antigüidade, na Idade Média e na sociedade burguesa.

Suas qualidades se concentram na boa pesquisa sobre as relações que tiveram alguns autores brasileiros com a "máquina editorial", especialmente as de Mário de Andrade. A série de citações retiradas de sua correspondência, em que pese um certo incômodo diante do que poderia ser uma bisbilhotice na sua intimidade, revela um modernista totalmente anacrônico, segundo as autoras, no trato com seus editores e diante das possibilidades de retribuição financeira pela publicação de sua obra. É, no entanto, tocante a sinceridade do autor de Macunaíma e a consciência dos limites que a realidade brasileira, na época, impunha às aspirações de boa remuneração pelo trabalho das letras, tanto na poesia quanto na ficção.

Luta contra a "máquina" - Ao contrário do que parecem acreditar as autoras, também na Inglaterra, nesse período, e mantidas certas proporções, a situação não era tão diferente, segundo o célebre economista e intelectual, Lord John Maynard Keynes. Em artigo sobre o preço dos livros, publicado em 1927, pergunta Keynes: "Afora os livros didáticos, os manuais, as publicações comerciais e os livros vendidos em bancas, todos os editores de Londres ganhariam mais em conjunto que um único grande negociante de tecidos? (...) E o que dizer dos autores? São uma humilde tribo, gente que freqüentemente (muito freqüentemente, aliás) se contenta por não ter que pagar de seu próprio bolso para ver seus livros publicados. Com exceção de um restrito, embora não seletivo círculo de autores de best-sellers, os demais esperam ardentemente um dia sustentar mulher e filhos com seus livros."

Outro aspecto da obra que apresenta muito interesse para o leitor é a análise de documentação inédita composta por contratos editoriais, recibos, correspondências entre autores e editor da antiga Garnier, filial brasileira da famosa editora francesa, do período compreendido entre meados do século 19 às primeiras décadas do século 20. A partir dessa análise, ficam mais conhecidos alguns aspectos da vida literária no período, no que concerne a remuneração dos autores e formas de relacionamento entre o famoso editor e os autores brasileiros que utilizavam os seus serviços ou a ele ofereciam os seus.

As autoras, ao concluírem o relato das lutas que, "a tão duras penas", levaram, em 1898, atualizada em 1917, à criação da legislação brasileira de proteção aos direitos de autor, afirmam: "Assim, nas primeiras décadas do século 20 o Brasil dispõe de lei e regulamentação relativa ao direito autoral, concretizando uma das aspirações da geração que lutou pela República, no século 19", mas "não obstante a lei, os autores brasileiros precisa(ra)m continuar combatendo pelo justo pagamento de seu trabalho criativo".

Favores - Mas, com desalento, concluem que "sem suspeitar, Alexandre Herculano (que defendia em Portugal não direitos de autor, mas garantia estatal de condições de produção para o intelectual) vencia a parada em terras brasileiras". Segundo Lajolo e Zilberman, na República, "nossas letras passaram a depender, de modo crescente, do favor governamental. Em vez do público leitor, o Estado, simultaneamente agiota e avalista que empresta e garante, limitando o poder reivindicatório da literatura e seus agentes".

As autoras, entretanto, têm outra ambição nesta obra, além da boa contribuição que oferecem para a história do livro e da vida literária brasileiras. Reivindicam estar tecendo uma História da Literatura com "uma perspectiva nova, fazendo perguntas também novas sobre a prática de uma atividade específica, conhecida como arte literária", garantindo que seu "ponto de chegada", seria "ponto de partida para uma Teoria da Literatura que não se queira nem idealista, por sacralizar o texto, nem caolha, por ter dificuldade de enxergar os meandros da vida literária, que se estendem para além das relações lineares entre autor e obra".

Aqui, talvez, o ponto mais vulnerável do trabalho. Na ânsia de abrir portas abertas, esquecem trabalhos seminais, como o de Robert Escarpit, Sociologie de la littérature (1958), e o de Antonio Candido, Literatura e sociedade (1965), que já nos indicaram as novas perguntas e nos ensinaram a complexidade dos fatos literários e de suas teorias. Depois deles, as perguntas sempre se renovaram, numa ampliação que fez nascer uma nova história do livro, da leitura, das editoras, das livrarias e da literatura, e outros tantos autores.

Antoine Compagnon, em O demônio da teoria: literatura e senso comum, afirma: "Há uma verdade da teoria que a torna sedutora, mas ela não é toda a verdade, porque a realidade da literatura não é totalmente teorizável". Ainda assim, continua Compagnon, "a ambição teórica (...) deve ser levada a sério e avaliada segundo seu projeto". Apesar de referências a uma bibliografia que o deve balizar, o projeto teórico apresentado em O preço da leitura está certamente em esboço, não plantou seus fundamentos no terreno e, sem alicerces fincados no campo, fica no ar.


Aníbal Bragança
é professor adjunto do Depto. de Comunicação Social da UFF.
Autor de Livraria Ideal, do cordel à bibliofilia (1999).
Resenha publicada
no "Caderno Idéias" do Jornal do Brasil em 26/01/2002.
Reproduzida com autorização do autor.



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