Nascido das palestras proferidas na Biblioteca Pública de Nova York, em outubro de 1999, a obra de Jason Epstein, O negócio do livro tem como fio condutor o relato autobiográfico de sua vitoriosa trajetória profissional na indústria livreira americana, iniciada em 1950, aos 20 anos, na editora Doubleday, onde criou a importante série Anchor Books, passando, oito anos depois, para a Random House, da qual foi diretor editorial por cerca de 40 anos. Epstein viveu todo o processo de profundas transformações do mundo editorial e cultural ocorridas na segunda metade do século 20.
Além de pormenorizar as atividades que desenvolveu — aulas imperdíveis para todos os que militam ou se interessam pelo mundo editorial e livreiro —, o autor faz um retrato impiedoso do que considera a "cada vez mais desgastada indústria" na qual trabalhou no último meio século. Para Epstein, a edição de livros desviou-se da "sua verdadeira natureza" para entrar numa "dança da morte", da qual não encontra saída.
Na análise do sistema que, segundo ele, levou à "decrepitude terminal" do universo americano do livro, não resta pedra sobre pedra. De agentes literários a livreiros de shopping, de editores-executivos a serviço de conglomerados da mídia, que não gostam de ler, aos impasses do comércio eletrônico de livros, com os prejuízos constantes da Amazon.com, tudo passa pelo seu crivo implacável.
Epstein afirma que sua carreira "percorreu a longa e decrescente (...) ladeira" da indústria editorial americana. Segundo Robert Escarpit, em A revolução do livro, editado entre nós pela Fundação Getúlio Vargas, em 1976, "o big business irrompeu na edição americana" em 1955, levando-a a uma "mudança de escala". Epstein garante que hoje "o mundo editorial dos Estados Unidos é dominado por cinco impérios", três do quais, pelo menos, são estrangeiros.
O autor é um representante da transição entre os editores-empresários e os editores-executivos da indústria da mídia. O editor-empresário tem, em geral, "sólida formação intelectual e é movido por objetivos que são, ao mesmo tempo, econômicos e culturais". Segundo nossa tese, "muitas vezes sente-se com responsabilidades políticas diante da sociedade", acentuando-se o seu "eros pedagógico", sem se dispensar da "exigência de grande aptidão empresarial para mobilizar recursos, próprios ou de terceiros, para viabilizar seus empreendimentos". Para Roger Chartier, esse "empreendedor singular" se vê também como um intelectual, e cuja "atividade se faz em igualdade com a dos autores". Em determinado momento, afirma Epstein, o seu trabalho assemelha-se ao de um missionário, com a diferença apenas "no conteúdo de suas respectivas escrituras".
Ignorando que a edição tem uma história sóciocultural, de Gutenberg aos editores-executivos dos conglomerados atuais, Epstein afirma que "o negócio da edição de livros é por natureza pequeno, descentralizado, improvisado, pessoal; mais bem desempenhado por pequenos grupos de pessoas com afinidades, devotadas ao seu ofício, zelosas de sua autonomia, sensíveis às necessidades dos escritores e aos diversos interesses dos leitores", e vê com descrença e desconfiança absolutas o processo de concentração editorial e livreira, que fez do editor um executivo de um negócio comum.
Suas críticas mais severas vão para o processo social que levou à criação das redes de livrarias de shopping, que, pelos altos aluguéis, passaram a exigir maior rentabilidade e a rotatividade do estoque, baseado em best-sellers de fórmulas prontas e livros de ocasião escritos por personalidades da mídia, em detrimento dos livros de venda permanente e lenta, que formam a base dos catálogos das editoras mais sérias.
Mas Epstein faz um diagnóstico equivocado das raízes da crise, ao localizá-las na "migração do pós-guerra para os subúrbios e no mercado homogeneizado dela resultante", o que teria levado ao fechamento de milhares de livrarias independentes tradicionais, esquecendo que essa crise tem suas origens nas inovações tecnológicas dos meios de comunicação, desde a popularização do rádio e, posteriormente, da televisão, e, mais recentemente, nas novas tecnologias informáticas, que operam transformações na própria cultura e, especialmente, no caso, na relação do leitor com o livro impresso.
No entanto, Epstein revela-se um otimista quanto às possibilidades para o universo editorial criadas pelas novas tecnologias, especialmente a internet, antevendo para novos editores "uma vida de aventuras criativas muito mais conseqüentes e diferentes", em comparação com o que esperava a geração de 1920.
Corajoso, contundente, profundo, sério, mas leve, sem dúvida, este é um livro fruto de uma paixão duradoura pelo ofício. Nunca antes um editor consagrado havia feito um diagnóstico do mundo do livro como este.
Já no Brasil, são escassos os trabalhos de reflexão publicados por editores. O mais importante é, ainda, o de Monteiro Lobato, em A barca de Gleyre, em que, na correspondência com seu amigo Godofredo Rangel, relata seus sonhos, as lutas do cotidiano, as realizações e frustrações de seu trabalho de editor, nas primeiras décadas do século 20. Érico Veríssimo teve sua experiência de editor publicada em Um certo Henrique Bertaso, que escreveu sobre seu patrão na Editora Globo, de Porto Alegre. Mário da Silva Brito, também escritor e editor, deixou um bom depoimento, em Ângulo e horizonte, sobre o trabalho de José de Barros Martins. Nelson Palma Travassos foi outro desses raros editores a deixar suas reflexões e projetos para enfrentar as dificuldades do mercado editorial no país, enfeixados em Livro sobre livros, editado pela Hucitec, em 1978.
Ênio Silveira, que estagiou nos Estados Unidos com Alfred Knopf — uma das referências fundamentais de Jason Epstein —, pretendeu escrever suas memórias de editor. O poeta Moacyr Félix pôde reunir em Ênio Silveira, arquiteto de liberdades, postumamente, apenas pequenos textos e entrevistas sobre sua trajetória de editor, significativos, mas que não conseguem dar-nos plenamente a visão crítica e toda dimensão que teve Ênio na história editorial brasileira.
O lançamento de Memória de editor, com Salim Miguel e Eglê Malheiros, integra o projeto Memória do Livro, criado por Dorothée de Bruchard. O singelo e belo volume é o resultado de uma longa entrevista feita por ela e Tânia Piacentini. A obra, além de mapear a vida cultural dos anos 1940 a 1960 na capital catarinense, resgata a história editorial iniciada com a criação da revista Sul (1948-1957), vinculada ao Círculo de Arte Moderna, grupo de intelectuais e artistas que expressou de forma singular ("mais de integração que de ruptura") o movimento modernista naquele Estado. Outra realização editorial analisada nesse livro é a da revista Ficção, criada no Rio de Janeiro por Cícero Sandroni e Antonio Olinto, aos quais Salim Miguel e Eglê Malheiros se uniram, com Laura Sandroni e Fausto Cunha, em 1975. A Ficção, que chegou a alcançar a tiragem de 15 mil exemplares, marcou época e resistiu até 1979.
A obra mostra ainda o trabalho de Salim Miguel à frente da Editora da UFSC, nos anos de 1983-1991, e na Fundação Franklin Cascaes, de Florianópolis, coroando uma carreira de editor, desenvolvida paralelamente à atividade de jornalista e escritor vencedor de vários prêmios literários, inclusive o Juca Pato, este ano.
A iniciativa de Dorothée de Bruchard, embora mais ampla em suas pretensões, guarda semelhanças com o projeto Editando o Editor (Com-Arte/Edusp), criado por Jerusa Pires Ferreira, na ECA-USP, e que já publicou volumes de entrevistas com os editores Jacó Guinsburg, da Perspectiva, Flávio Aderaldo, da Hucitec, Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, Arlindo Pinto de Souza, da Luzeiro, e de Jorge Zahar.
Aníbal Bragança
é professor adjunto do Depto. de Comunicação Social da UFF.
Autor de Livraria Ideal, do cordel à bibliofilia.
Resenha publicada
no "Caderno Idéias" do Jornal do Brasil em 06/07/2002.
Reproduzida com autorização do autor.
Veja excerto de / Memória de editor /