É somente através do amor pelos animais e pelos livros que o homem consegue perceber quanto são frustrantes todas as suas outras relações — que, na maioria das vezes, dependem dos interesses, paixões e caprichos mais diversos. No contato com os animais e com os livros, experimentamos a fantástica possibilidade de estabelecer uma ligação afetiva direta e totalmente sincera, sem os subterfúgios e rituais aos quais estamos necessariamente condicionados pelo convívio social. E o que mais surpreende neste "negócio" (pois estamos falando de uma relação de troca) é que sempre recebemos infinitamente mais do que podemos dar.
Nossa comparação torna-se ainda mais pertinente quando constatamos que ambos — livros e animais — têm outro ponto em comum: estão muito mais "vivos" do que a maior parte de nós. Se os animais vivem totalmente de acordo com as "leis" da natureza, numa plenitude que nem ao menos podemos imaginar, os livros dispõem — mesmo que virtualmente — de uma qualidade que todos invejamos (ou deveríamos invejar): a imortalidade. Em todas as suas formas (placas de argila, rolos de papiro, pergaminho, papel, disquetes de computador...) os livros têm se mostrado, ao longo dos séculos, bem mais perenes do que aqueles que os escreveram.
Porém, tal como os deuses e os monstros, o livro é uma criação humana que ganhou vida própria e poderes que, na opinião de muitos, deveriam ser rigorosamente controlados (ou, se possível, suprimidos). É sobre este poder de sedução "diabólico" dos livros e sobre as inúmeras tentativas de "exorcizá-lo" que o escritor italiano Luciano Canfora nos fala em seu Livro e Liberdade. Sem a pretensão de fazer uma história do livro e de sua relação com os homens (admiradores ou inimigos), Canfora prefere o tom da conversa erudita, valendo-se de exemplos que ele vai buscar na realidade e na própria literatura.
Logo de início, apresenta-nos um personagem emblemático: Dom Quixote.
Trata-se — segundo pensam quase todos aqueles que o cercam — de uma "vítima" dos livros que, como sereias, o enfeitiçaram com seu chamado para a aventura. Porém, são justamente a rejeição à mediocridade do mundo real e a busca por um plano superior de existência que fazem de Dom Quixote um legítimo herdeiro dos heróis medievais que ele tanto admirava (e também dos verdadeiros artistas e filósofos de todos os tempos). Queimados os seus livros — pela "inquisição" doméstica — e lacrada a biblioteca infernal, resta ao velho cavaleiro buscar a transição definitiva para um outro mundo, através da morte redentora.
Outro exemplo, desta vez real, é a legendária Biblioteca de Alexandria, fundada no Egito por Ptomoleu Sóter, em meados do século 4 a.C. Esta gigantesca biblioteca — que, segundo a tradição, conteria boa parte de todo o saber produzido até então — foi vítima de uma longa série de saques e incêndios, vindo a ser completamente destruída pelos conquistadores muçulmanos, no século 7º. É bastante sugestivo que o mais importante depósito de livros de todos os tempos tenha sido justamente o alvo preferencial daqueles que desejavam monopolizar o saber ou aniquilá-lo.
Mas não se restringem aos tempos mais remotos as trágicas relações entre os livros e o fogo. Lembrando os célebres processos envolvendo Giordano Bruno e Galileu, Canfora mostra como o saber (e o livro, seu instrumento privilegiado) é uma ameaça concreta para todo o tipo de poder que se fundamenta na ignorância e no obscurantismo (uma imensa maioria, se observarmos bem). A Igreja queimava livros (e, em alguns casos, os próprios autores) em plena Renascença, os nazistas queimaram livros em 1933 (deixando os "autores" para mais tarde) e ainda há muito fogo pela frente, se acreditarmos na antiutopia de Ray Bradbury, em seu genial livro Fahrenheit 451.
Na obra de Bradbury, os bombeiros do futuro são agentes encarregados da apreensão e queima de todos os livros, enquanto a população desfruta do mais aprazível entorpecimento mental e espiritual. Porém, alguns elementos marginais, insatisfeitos com a nova ordem, reúnem-se numa comunidade alternativa, onde cada indivíduo assume a tarefa de memorizar todo o conteúdo de seu livro preferido, do qual se tornará um relicário vivo. É justamente aí, nesta bela metáfora, que encontramos o segredo da imortalidade dos livros: não se trata da sobrevivência da matéria (que nada mais é que um suporte), mas de uma virtualidade que se efetua a cada leitura, a cada evocação em qualquer ponto do espaço ou do tempo. Somos, então, responsáveis pela vida dos livros, e também pela sua morte.
Sem se preocupar em chegar a conclusões precisas ou em fechar questões, Livro e Liberdade padece de uma certa superficialidade. O autor transita por inúmeros temas que ele raramente desenvolve, para lástima dos seus leitores.
Porém, como já dissemos, trata-se bem mais de uma conversa (bastante agradável, aliás) do que de uma obra histórica ortodoxa ou de um tratado científico. O principal objetivo de Canfora parece ser lembrar-nos de que a trajetória do livro está longe de ser tranqüila e aprazível, lembrando mais uma trilha aberta em plena selva, onde os perigos espreitam em toda parte.
Podemos dizer, sem exagero, que o livro é um excelente instrumento para avaliarmos nossa sociedade. O que se escreve (ou não se escreve) e o que se lê (ou não se lê) são indicadores precisos de quem somos e do que poderemos ser.
Resenha publicada no
Estado de São Paulo, 3 de agosto de 2003.
Reproduzida com autorização do autor.