Foi para resolver problemas financeiros e garantir a sobrevivência da Manha, que o Barão de Itararé lançou, em 1949, o Almanhaque. Empreendimento pensado para dar lucro, o Almanhaque trazia as páginas recheadas de anúncios, alguns produzidos pela própria equipe de artistas gráficos, liderada por Guevara.
Único paraguaio que venceu no Brasil, no dizer de Humberto de Campos, o caricaturista e artista gráfico Guevara teve enorme influência na caricatura e nas artes gráficas brasileiras nas décadas de 30, 40 e 50 e sempre esteve ligado aos projetos do Barão de Itararé. Seu traço é a marca maior deste Almanhaque, onde Guevara está presente na maior parte dos desenhos. Graficamente, é o brasão de Itararé a obra mais delicada, mas também merece registro a beleza do caderno de anúncios da Alpargatas, em quatro cores, apresentando cenas brasileiras.
Paródia dos almanaques tradicionais, o Almanhaque reunia de textos do Barão a passatempos, jogos, anedotas, quadrinhas e contos humorísticos. Logo nas primeiras páginas, aparecem aspectos da biografia de Itararé e de sua família. Senhor feudal de Bangu-sur-mer, o Barão seria um "homem sem segredos que vive às claras, aproveitando as gemas e sem desprezar as cascas", um "grande herói que a pátria chora em vida e há de sorrir, incrédula, quando o souber morto". Dentre seus parentes, aparece Victor Hugo que seria primo em linha reta, sem escalas, do Barão de Itararé, e um "inimigo íntimo dos banqueiros que não emprestavam dinheiro às pessoas decentes e contra os quais escreveu um veemente libelo, intitulado "Os miseráveis".
A biografia do Barão brinca com duas informações verdadeiras: seu ano de nascimento, 1895 (teria 54 anos quando publicou o Almanhaque), e sua passagem pela faculdade de medicina. Itararé declara, no entanto, que pode provar que tem, na verdade, 39 anos, pois perdeu 10, repetindo o segundo ano do curso de medicina em Porto Alegre e dois, na prisão, "onde se enclausurou para meditação e retiros espirituais, como hóspede do estado e com guarda permanente à sua disposição". Finalmente, diz que, "manuseando com ar de romântico desconsolo, um velho diário de notas, todo tatuado com nomes femininos, de corações sangrando, com endereços e números de telefones, tendo as páginas separadas por fitinhas mimosas de diversas cores e, às vezes, entremeadas de folhas murchas, de pétalas secas de rosas e raminhos de violetas descoradas, mas que ainda permanecem roxas de saudades", chegara à conclusão de que perdera pelo menos três anos perseguindo mulheres bonitas.
Naturalmente que não poderia faltar neste Almanhaque outra marca do humor do Barão: seus aforismos. As chamadas máximas e mínimas do Barão, às vezes estão impregnadas de poesia: "a estrela de Belém foi o primeiro anúncio luminoso". Em outras, o sabor é extremamente atual, como as que dizem: "o erro do governo não é a falta de persistência mas a persistência na falta" ou, "anistia é um ato pelo qual o governo resolve perdoar generosamente as injustiças que ele mesmo cometeu"; ou ainda: "os juros não dormem".
Este Almanhaque, publicado em plena Guerra Fria, não é rico em sátiras aos políticos e à política em geral. Getúlio, ainda vivendo o exílio em S. Borja, aparece ali em uma ou duas situações, sem muito alarde. Alusão à sua próxima volta à presidência é o anúncio, aliado à uma daquelas típicas montagens fotográficas da Manha, onde se informa que o "sr. G. Túlio Vargas, que já foi campeão presidencial de golfo e ping-pong" e está se dedicando ao futebol, tem treinado diariamente em sua fazenda, "organizando uma equipe com a qual tenciona disputar, para o ano, o campeonato nacional". Israel Pinheiro, político de Minas que fora presidente da Vale do Rio Doce, naquele posto, segundo o Barão: comeu o "Doce", bebeu o "Rio" e deixou um vale na "Caixa". Outra vítima, é o governador Benedito Valadares que, despachando em seu gabinete, no Palácio da Liberdade, incomodado com a luz, ordenou: "Baixa essa venezuela". Itararé justifica Valadares dizendo que: se, na Pérsia, aquele tipo de cortina é chamado de veneziana e em Veneza, de persiana, porque, então não podemos chamá-la no Brasil de venezuela? .
Dentre os recursos típicos dos almanaques, o Barão inclui uma série de passatempos, enigmas, curiosidades. Frases que se lêem da mesma maneira de trás para frente (somar só os ramos); divertidas e, naturalmente, falsas, etimologias de palavras como negócio, esnobe, ragu, etc.; curiosidades como a do nome de Vital Brasil e de suas irmãs (chamar-se-iam respectivamente, Vital Brasil Mineiro da Campanha, Maria Gabriela Cabloca de Itajubá e Iracema Ema do Vale Sapucaí); piadas de salão; contos exemplares e quadrinhas. Aquelas quadrinhas tão populares no Brasil de antigamente. Nelas, por vezes, se expressa um julgamento pessimista da humanidade: "Venci, cheguei a subir:/ nada, ninguém me ajudou!/ Mas, comecei a cair:/ toda a gente me empurrou". Ou apenas um comentário malicioso sobre a indumentária feminina: "Teus vestidos, eu não acho/ Mui decentes, minha prima/ São altos demais em baixo,/ São baixos demais em cima".
Dentre os vários autores incluídos no Almanhaque, destacam-se Lima Barreto, Artur Azevedo, Belmiro Braga, Érico Veríssimo e, de estrangeiros, Mark Twain. Bernard Shaw, cuja influência sobre o Barão é contestada logo no começo do volume, não tem texto incluído. Algumas referências ao humor nordestino aparecem nos trechos de Leonardo Mota. A melhor é aquela do coronel que queria comprar um burro de carga novo e possante. "Eu tenho um, seu coronel — ofereceu o Miguel Carpina". O coronel foi ver o animal e, constatando que tinha um defeito, reclamou: "Ora, Miguel, seu burro é defeituoso: falta metade de um beiço... Porque você não me disse isso logo?" Ao que, Miguel Carpina retrucou: "Eu não disse, seu coronel, porque tava na mente que Vossa Senhoria queria era um burro pra carregar carga. Agora é que estou vendo que Vamincê quer é um burro pra assobiar".
Coisas assim aproximam o Almanhaque do Barão daqueles almanaques tradicionais e, talvez por isso, ele tenha feito tanto sucesso. Sucesso que, segundo Cláudio Figueiredo, autor de As duas Vidas de Aparicio Torelly, (Record, 1988) provocou um certo desafogo em suas dificuldades financeiras e permitiu com que relançasse A Manha, que havia deixado de circular em 1948.
Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, o Barão de Itararé, nasceu no Rio Grande do Sul, em 29 de janeiro de 1895. Chegou ao Rio em 1925, trabalhando em O Globo e, na A Manhã de Mário Rodrigues. Em 1926, fundou A Manha. Em 1930, se proclamou Barão de Itararé. Em outubro de 1934, lança o "Jornal do Povo", de caráter político-doutrinário que dura apenas dez dias. Por conta de matérias publicadas ali foi seqüestrado e espancado por oficiais da marinha. Preso, novamente, em 1935, fica na prisão durante todo o ano de 1936, onde convive com Hermes Lima, Eneida de Morais, Nise da Silveira e Graciliano Ramos. Depois de solto, reabre A Manha, que só consegue funcionar por um ano, sob censura. Durante seis anos, a partir de janeiro de 1938, publica no Diário de Notícias a coluna "A manhã tem mais...". Durante o Estado Novo (1937-1945), é preso diversas vezes. Em 1945, ressurge A Manha, e Aporelly é eleito vereador pelo PCB mas, em 1947, o registro do partido é cassado e ele perde o mandato. Em 1948, em virtude de problemas financeiros, A Manha deixa de circular. Em 1949, associa-se a Guevara e lança, em São Paulo, o primeiro Almanhaque. Em 1950, reaparece A Manha, editada em São Paulo, onde o humorista viveria até setembro de 1952, quando o jornal deixa de circular, definitivamente. Em 1955 lança dois Almanhaques, no 1º. e 2º. semestres. Em 1963, viaja à China, passando por Praga e Moscou. Os últimos anos (1964/1970), passou-os só e afastado da imprensa, realizando pesquisas esotéricas. Em 27 de novembro de 1971, morre, no Rio de Janeiro, Aparício Torelly, o Barão de Itararé.
Isabel Lustosa
é pesquisadora da Casa de Rui Barbosa
e autora de Insultos impressos: a guerra dos jornalistas na Independência.
Resenha publicada
no "Caderno Idéias" do Jornal do Brasil em 06/07/2002.
Reproduzida com autorização da autora.