Eça de Queirós e o livro como ficção


Carlos Reis



RESENHA de A Inscrição do livro e da leitura na ficção de Eça de Queirós,
de Maria do Rosário Cunha. (Coimbra: Almedina, 2004.)





O estudo recentemente publicado pela Almedina, da autoria de Maria do Rosário Cunha e intitulado A inscrição do livro e da leitura na ficção de Eça de Queirós, é desde já e para todos os efeitos um dos mais penetrantes, inteligentes e inovadores trabalhos que nos últimos anos apareceram, no campo dos estudos queirosianos. O livro a que me refiro resulta de uma dissertação académica, o que em nada afecta a clareza e elegância da sua escrita, e a autora é uma personalidade com provas dadas no campo em apreço, com destaque para o estudo Molduras: Articulações Externas do Romance Queirosiano (1997).

Posto isto, acrescento que o estudo de Maria do Rosário Cunha se articula sobre duas partes distintas mas harmoniosamente relacionadas. Na primeira parte procede-se a uma reflexão, com suporte documental e atitude crítica, sobre a problemática da leitura e do leitor em Portugal, na segunda metade do século XIX. Este é ainda o tempo, recorde-se, que motiva o conhecido texto que Eça escreveu para prefaciar os Azulejos, do seu amigo conde de Arnoso, texto em que justamente, com admirável intuição sociológica e em termos que Pierre Bourdieu não enjeitaria, observa: "Foi então que se sumiu o leitor (…): e em lugar dele o homem de letras viu diante de si a turba que se chama o público, que lê alto e à pressa no rumor das ruas." Aquele "então" reporta-se, naturalmente, ao conjunto de fenómenos sociais, económicos e técnicos que, na sequência da Revolução Francesa, vieram alterar substancialmente a condição do livro e o estatuto de quem o lia. E quem o lia era, cada vez mais, a mulher, com tempo livre e com poder económico para, como a Luísa d'O Primo Basílio, ter conta aberta num livreiro da Baixa.

Para trás (e ainda no tempo em que Luísa lia A Dama das Camélias) iam ficando muitas coisas: hábitos culturais, protocolos receptivos e mesmo certos modelos de escritor e de escrita. Bem o testemunha aquele revoltado Tomás de Alencar que, no interior de uma ficção queirosiana, via a sua "catedral romântica" implacavelmente demolida por "livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições". Tinham um rótulo, esses livros, o de "romances naturalistas"; e o que eles representavam era não apenas a dimensão pública e quase massificada de uma leitura agora acessível a muitos, mas também o testemunho crítico que se tornava necessário enunciar acerca dos efeitos dessa leitura.

Depois de detidamente analisar essa translação de comportamentos e de condições de vida que transformaram o leitor em público, Maria do Rosário Cunha debruça-se sobre o mercado de livro que se vai formando e sobre a gradual projecção dos problemas daí decorrentes (e que iam configurando um novo imaginário do livro) na ficção narrativa: da realidade ao universo do romance, a leitura e o livro passam a ser temas literários. Isto sem esquecer testemunhos de feição quase ensaística, como eram os textos de Ramalho Ortigão n'As Farpas, em que a leitura e a condição da mulher são escrutinadas em termos que hoje fazem sorrir — ou provocam, de outro ponto de vista, alguma perplexidade. Era Ramalho quem, a propósito d'O crime do padre Amaro, escrevia, numa d'As Farpas e como bem lembra Maria do Rosário Cunha: "Se depois da ideia que procurei dar-te deste livro, tu, leitor, me perguntares se o deves dar a ler à menina tua filha, eu respondo-te terminantemente que não. As meninas nunca lêem romances, quaisquer que eles sejam"; e continuava ainda: "Se o podem ler as mulheres — é uma outra questão, à qual respondo que podem, ainda que com esta reserva: — às escondidas".

É, contudo, na segunda parte d'A inscrição do livro e da leitura na ficção de Eça de Queirós que a análise incide sobre os romances de Eça e sobre a relevância e significados que neles assume a presença do livro e a prática da leitura — ou a sua ausência. Os autores lidos, o tipo de edições, o lugar físico atribuído ao livro, o momento da leitura e os seus efeitos, tudo isto perpassa na ficção de um escritor em cujos textos nada está por acaso e tudo tem um sentido próprio: tanto o enquadramento doméstico da Luísa que, "saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás de uma compota um livro [A Dama das Camélias] um pouco enxovalhado", como a fúria com que "Gonçalo agarrou de sobre a mesa um volume de Walter Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra, contra o tronco de uma faia. É que descortinara o gato da Rosa cozinheira, trepado, de unhas fincadas num ramo, arqueando a espinha, para assaltar um ninho de melros." Aquele romance e aquele autor não estão ali por acaso; e a propósito de muitos episódios como estes, Maria do Rosário Cunha revela um conhecimento profundo das obras queirosianas, um apurado sentido crítico e uma fina intuição interpretativa, tudo aliado à capacidade para conjugar elementos de ordem sociológica com a formulação narrativa do discurso ficcional.

Parecem-me evidentes as qualidades que num estudo deste fôlego se evidenciam, sobretudo quando ponderadas do ponto de vista da sua economia interna. Trata-se de um trabalho equilibradamente estruturado, suportado por uma indagação teórica necessária mas não gratuitamente "exibida", revelando uma capacidade de análise apreciável, tudo desembocando numa escrita que, sem se alhear das exigências de rigor requeridas por uma abordagem académica, se nos apresenta cristalinamente clara e elegante. Para além disso, encontram-se aqui aprofundadas e demonstradas intuições que (como algumas vezes me disse o meu mestre Guerra da Cal) são o ponto de partida e também o risco inevitável a correr por uma verdadeira tese, ou seja, algo mais do que um inventário de dados ou uma sucessão de análises. Que intuições? Por exemplo, a de que a obra ficcional de Eça pode ser explicada no quadro de um processo de institucionalização da literatura que fazia da personagem-escritor e dos temas da leitura e do livro decisivos argumentos em prol de um processo de legitimação social que, explanando-se no interior da ficção, eram sujeito e objecto desse processo de legitimação. E também: a que aponta para a possibilidade de dialecticamente se "ler", na enfatização da leitura e na democratização do livro, o princípio de um processo que, por excesso ou por cansaço, conduziria ao famoso silêncio com que Fradique Mendes resolveu (sem a resolver) a impotência do "verbo humano (…) para encarnar a menor impressão intelectual ou reproduzir a simples forma de um arbusto…"

O jovem Eça dizia a Batalha Reis, por 1866 ou 67: " — Estamo-nos tornando impressos." Aludia assim, de forma tão sugestiva como difusa e decerto ainda mal consciente, a uma nova axiologia do livro e da leitura e a situações e vivências que essa axiologia estimulava. No desenvolvimento de uma obra que, nos temas aqui contemplados, se não limitou à ficção (em muitos outros textos queirosianos, particularmente nos de imprensa, tais temas são reiteradamente glosados), atinge-se, com A Cidade e as Serras, o termo excessivo desse protagonismo do livro e da leitura: representa-se, nesse episódio culminante, a definitiva caricatura em que, num singular encontro com Deus, termina um sonho de Zé Fernandes, motivado por uma Paris invadida por livros: no seu singular encontro com um Deus-leitor, o amigo de Jacinto nota: "O Eterno lia Voltaire, numa edição barata, e sorria."

Tudo isto e o mais que aqui não cabe entendeu-o muito bem Maria do Rosário Cunha. Melhor o demonstra neste livro que é, a partir de agora, um dos mais sérios, fundamentados e inovadores estudos que a obra queirosiana conheceu nos últimos anos, com a adicional capacidade de mediatamente remeter para a nossa própria relação com o livro e com a leitura.


Carlos Reis
é professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
e coordena a Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós
em publicação na Imprensa Nacional.
Resenha publicada
no Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, fevereiro de 2005.
Texto gentilmente cedido pelo autor para este site.
Reprodução proibida.



| VOLTA PARA BIBLIOGRAFIA | | Leitura

| OUTRAS RESENHAS |