Confissões da amante de livros


Luiz Gadelha



RESENHA de Ex-Libris - confissões de uma leitora comum,
de Anne Fadiman. (Trad. de Ricardo Gomes Quintana. RJ: Zahar, 2002.)





Objeto de um dinamismo excepcional, design com milhares de anos confirmados como ideal, desenvolvido nos últimos 500 anos mais precisamente em seus componentes, o livro extrapola as próprias páginas. A história de seu surgimento, fascinante como exemplo de uma criação humana conjunta, é apenas uma parte das muitas histórias que compõem os milhares de títulos espalhados pelo mundo e são lidas diariamente. Mas uma outra história é composta a cada dia pelos leitores no trato que dão aos seus exemplares, no cuidado ou descuido com que se utilizam biblioteca própria ou pública. Enfim cada história o exemplar de nossa leitura cotidiana não está apenas contando a história criada pelo autor, mas vivenciando diariamente uma trama entre leitor e objeto. O que acontece entre os dois, isso é outra história.

A convivência serviu para muitos outros livros, alguns clássicos e de autores importantes da literatura, outros mais técnicos. Nos últimos tempos, o livro e a leitura são temas de muitas obras, em grande parte recheadas de academicismo. O mercado brasileiro tem lançado desde obras de Roger Chartier e Alberto Manguel a produções brasileiras. Embora para o leitor de hoje pareça que títulos que falem sobre livros tenham surgido há pouco, a literatura produzida no país até é de muito valor tanto em informação como em texto e originalidade. Eduardo Frieiro, Rubem Borba de Moraes, Vivaldi Moreira e mais recentemente Plínio Doyle e José Mindlin, sem contar a extensa obra A fascinante história do livro, em três volumes, de José Teixeira de Oliveira, e a rara A biblioteca e seus habitantes, de América de Oliveira Costa, que ainda desenvolveu o tema na série "O comércio das palavras". Os últimos dois trabalhos se destacam: um por seu valor de referência histórica; o outro, por dissecar os livros e a sua relação com os proprietários e os autores a partir das dedicatórias nos livros.

Agora chega às prateleiras o livro de uma leitora nada comum. Anne Fadiman, colaboradora do The New York Times, Life e Civilization Harper's, resolveu declarar seu amor aos livros de uma forma inusitada, contando as alegrias e mesmo os maus-tratos do leitor para com o livro em Ex-libris - Confissões de uma leitora comum (Jorge Zahar Editor). A expressão latina que dá título ao livro significa "livros de", livro da "biblioteca de", e é aplicada como vinheta ou inscrição, indicando o nome ou a divisa do proprietário, na página de abertura ou na contracapa. Como no caso dos selos, é disputadíssimo entre colecionadores e teve no Brasil uma fase áurea até os anos 50/60.

Fadiman revela entre outras coisas sua compulsividade com a leitura a ponto de com a maior tranqüilidade ler inteiro o manual de um Toyota 1974, só por não ter no momento o que ler. Leitora incomum vibra quando levada pelo marido a um sebo desconhecido em Nova Iorque e ser presenteada com 8,5 kg de livros. A norte-americana, em 18 artigos, comenta desde o "casamento" das bibliotecas sua e de seu marido, as dedicatórias, a estante excêntrica, os sebos e mesmo o que não se fazer com o livro, sabendo que "há mais de uma (maneira) também de ser amar um livro", num capítulo que pode ser considerado de verdadeira bibliofagia, a partir do caso de Thomas Jefferson, que retalhou uma 1ª edição (1572) das obras de Plutarco, em grego.

Embora passe bem longe da categoria do texto de Frieiro, Rubem Borba ou Oliveira Costa, a escritora norte-americana perpassa em todo o livro a importância dos pais em sua formação como leitora. "Nossos pais possuíam cerca de 7 mil livros. Toda vez que nos mudávamos para uma casa nova, um carpinteiro construía um quarto de milha de estantes; toda vez que íamos embora, os novos donos removiam-nas". A leitura, constata Fadimann, é uma tradição que vinha dos avós. O avô materno cobriu quase cinco metros de parede com estantes para a filha de nove anos e os avós paternos montaram "duas estantes de nogueira escuras com obras de Scott, Tolstoi e Maupassant" para o filho.


Luiz Gadelha é jornalista.
Resenha publicada
no Leitores & Livros, n. 35, junho-julho 2002.
Reproduzida com autorização do autor.



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