Lefevere em edição descuidada


Cristina Carneiro Rodrigues



RESENHA de Tradução, reescrita e manipulação da fama literária,
de André Lefevere. (Trad. de Claudia Matos Seligmann. Bauru: Edusc,2007.)





São poucos os livros sobre tradução traduzidos no Brasil. Além da iniciativa pioneira do Núcleo de Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, que lançou em 2001 o primeiro volume dos Clássicos da Teoria da Tradução, apenas a Editora da Universidade do Sagrado Coração (Edusc), de Bauru, São Paulo, tem uma coleção, a Signum, dedicada aos Estudos da Tradução. Obras de Berman, Venuti, Robinson, Milton, foram publicadas em edições responsáveis a partir de 2002. Esse não é o caso da tradução de Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame, de André Lefevere, lançada em 2007, sem repercussão junto à comunidade, talvez por conta dos problemas que apresenta, alguns dos quais apontarei nesta resenha. Começo pelo título: Tradução, reescrita e manipulação da fama literária; considero acertada a opção por traduzir rewriting por reescrita, em lugar de reescritura. No entanto, é apenas no título do livro e da apresentação que lemos “reescrita” – no corpo do texto e mesmo na quarta capa do livro, a palavra transforma-se em “reescritura”. O Sumário apresenta erros de digitação e de diagramação. Esses já são os primeiros indícios de que a edição não foi cuidadosa, assim como não o foi sua revisão.

A leitura do livro é mais reveladora dessa falta de atenção editorial. O General Editors’ Preface que introduz os livros da Coleção Translation Studies da Routledge, assinado por Susan Bassnett e André Lefevere em 1990, é traduzido como Prefácio Geral dos Organizadores, mas não é contextualizado. Assim, quando o leitor se depara com “este livro pertence a uma série que se refere aos estudos da tradução” (p. 12), pode pensar que lê a abertura dos volumes da Coleção Signum. Nesse Prefácio, a disciplina Translation Studies é traduzida ora como “estudos sobre Tradução”, ora como “estudos da Tradução” (p. 11-12). É nele também que “reescritura” é retomada, para explicar que “a Tradução é, certamente, uma reescritura de um texto original” (p. 11) [Traslation is, of course, a rewriting of an original texto, p. vii]. Se o retorno de “reescritura” é evidência de falta de revisão, o equívoco em relação à tradução de Translation Studies é de falta de familiaridade com a área. Isso fica manifesto quando se lê, tanto na apresentação quanto na orelha do livro que “André Lefevere é professor no Departamento de Línguas Germânicas e Literatura Comparada da Universidade do Texas, em Austin”, sem qualquer nota sobre seu falecimento em 1996.

O papel em que o livro foi publicado é bege acinzentado, com manchas características de papel reciclado, mas consta como livro “impresso em papel reciclável” (p. 264). A impressão é irregular, de preto a cinza, com falhas que dificultam a leitura. As poucas notas de rodapé não trazem a identificação de autoria. O último capítulo, sobre edição, tem erro de montagem: as páginas 247 a 244 antecedem as páginas de 241 a 246. Não há padronização do tamanho da fonte nos exemplos de traduções.

O livro da Routledge não traz, após as citações, as referências ao autor e ano; informa apenas as páginas em que se encontra o texto mencionado e as referências bibliográficas estão no final do livro, divididas por capítulo, antes do índice. Na edição da Edusc, acertadamente, incluem-se as referências ao final de cada capítulo, facilitando a consulta. E parte das referências, no caso de citações, é normatizada, com o nome do autor em maiúsculas, o ano da publicação, e a página. Mas essa norma não é seguida em todos os casos – muitas vezes há apenas um número entre parênteses ou entre colchetes, às vezes antecedido de um “p.”, sem qualquer padronização.

Falta homogeneidade também no tratamento dado aos antropônimos, aos topônimos e aos títulos de obras analisadas por Lefevere. O quarto capítulo é exemplar da falta de um direcionamento. Seu título é “Linhas da vida, narizes, pernas, maçanetas: o Lysistrata de Aristófanes” (p. 73), em que o nome do autor está de acordo com as normas brasileiras, mas o título da peça, que também é o nome da principal personagem feminina da comédia, permanece em inglês. Uma simples consulta ao catálogo virtual da Biblioteca Nacional nos informa que há oito edições da peça em português, algumas com acento em Lisístrata, outras sem o acento, mas nenhuma mantém o y do inglês. Causa também estranhamento o artigo usado para a obra ser masculino; e não é apenas no título: artigos e pronomes masculinos são utilizados nas páginas 73, 75, 77, 78, 81, por exemplo. Heracles é traduzido por Héracles em um página (p. 92), mas na seguinte, por Hércules (p. 93). Tereu, o rei da Trácia permanece com o nome em inglês, Tereus (p. 94), mas outros, como Alcibíades (p. 54), Aquiles (p. 146), Catulo (p. 167), Afrodite (p. 167), Virgílio (187) recebem os nomes em português. Entretanto, também não há padronização: encontramos Euripides em um página (94), mas Eurípides no índice (p. 259); Pátroclos de uma página (p. 143), transforma-se em Pátroclo (p. 147, 157). No índice aí encontramos referência a Martin Lutero (p. 260) e a Napoleão Bonaparte (p. 257). Claramente há uma indecisão sobre quais normas adotar, permitindo termos um rei Luís em um capítulo (p. 35) e um Luiz, em outro (p. 227). O mesmo ocorre com topônimos, pois temos a cidade de Hamburg (p. 243), mas Amsterdã e Estrasburgo (p. 43). A obra A morte de Danton (p. 34, p. 241), transforma-se, em Morte de Danton (254).

As normas ortográficas do português, que mandam que os nomes de povos e línguas sejam grafados em minúsculas, ora são, ora não são respeitadas; encontramos um “guerreiro Trácio” (p. 94), um “espírito Europeu” (p. 235), um “gabinete Holandês” (p. 101), “poetas Nigerianos” (p. 212), “poetas de língua Portuguesa” (p. 213), mas “críticos franceses (p. 234), “Romantismo europeu” (234) e um “original em holandês” (p. 101).

Termos traduzidos, mas dos quais se quis preservar a palavra em inglês, ora estão entre colchetes, ora entre parênteses; por exemplo, temos, em um mesmo capítulo, “expurgaram (edited-out)” (p. 182), “espírito [wit]” (p. 186) e “espírito (wit)” (p. 188). O mesmo ocorre com as traduções dos exemplos e das epígrafes para o português, que ora vêm entre parênteses, ora entre colchetes.

Apesar de o segundo capítulo ser intitulado “O sistema: mecenato” (p. 29), como tradução de “The system: patronage” (p.11) e de patron ser traduzido por mecenas, o antropônimo que origina a palavra não é traduzido – mantém-se Maecenas, entre Luís XIV e os Medici (p. 35). No dicionário Merriam-Webster, a palavra inglesa maecenas é definida como “a generous patron especially of literature or art” e o termo patron é dado como seu sinônimo; em português, teríamos a opção por patronagem, patronato, mecenato, patrono, mecenas. Assim, as opções da tradutora por “mecenas” e “mecenato” são possíveis, mas demonstram pouca familiaridade com a literatura da área, que tem usado com frequência “patronagem”. Também não parece haver conhecimento de estudos linguísticos e literários. É o caso, por exemplo, do capítulo em que Lefevere discute a sonoridade de poema de Catulo e explica que o “ae” latino é pronunciado [ai]; como se trata da notação usada em fonética, não deveria haver qualquer alteração na representação do som, mas lemos, na tradução, que “ae” é “pronunciado [ei] em português” (p.167). Em outros pontos há outras evidências de falta de familiaridade com o assunto; por exemplo, o “enjambement” da página 167 aparece como “cavalgamento” na página 174, os “Malagasy poets” aparecem como “poetas malagasy” (p. 201, 208), em lugar de malgaxes. O segundo marido de Madame de Staël, descrito romanticamente como “a young phthisic invalid” ( p. 141), é prosaicamente traduzido como “um jovem asmático inválido” (p. 227). Uma “loaf of bread” transforma-se em uma “broa de pão” (p. 70). Reescreve-se a “late-Augustan poetic diction” (p. 89) como “tardia poesia augustiana” (p. 146) remetendo, talvez, aos imperadores romanos. Não há tentativa de tradução de variantes do inglês padrão, mas lemos que os tradutores Harrison e Simmons “comprometem-se com a variação da Standard/ Pidgin English” (p. 97) [Harrison and Simmons oblige with the Standard/Pidgin English variation, p. 57]. Os níveis ilocucionário [illocutionary] e locucionário [locutionary] convertem-se, respectivamente, em “elocutivo” e “locutivo” (p. 97). O capítulo em que Lefevere discute como uma poética codificada exerce “tremenda influência conformativa sobre o desenvolvimento” (p. 52) de um sistema literário e qual sua ação sobre a reescrita é denominado The system: Poetics (p. 26), e o capítulo em que explica dificuldades de tradução devido a diferenças poetológicas, Translation: Poetics (p. 73). Os títulos foram traduzidos, respectivamente, como “O sistema: poéticas” (p. 51) e “Tradução: poéticas” (p. 121), como se a palavra inglesa remetesse a plural.

Encontramos, ainda, erros de ortografia (“carroagem”, p. 220), de segmentação de palavras (morfo-ssintaxe, p. 166) e de pontuação. Abaixo, uma amostra de pontuação imprecisa:

o incidente repetido e regular daquilo que eles [escritores sobre traduções] denominam “erros” deve chamar atenção para o fato de que um erro isolado é, apenas isso, mas que uma série recorrente de “erros” aponta mais para um padrão, que é a expressão de uma estratégia. (Lefevere, 2007, p. 156)

the repeated and regular incidence of what they [writers on translation] refer to as “mistakes” ought to alert them to the fact that an isolated mistake is, probably, just that, whereas a recurrent series of “mistakes” most likely points to a pattern that is the expression of a strategy. (Lefevere, 1992, p. 97)

Os problemas que apontei, entretanto, são indícios da ausência de um padrão, de uma estratégia. A publicação em pauta exemplifica como a falta de um projeto – tradutório e editorial – compromete a leitura e a confiabilidade de uma obra. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária é um texto exemplar para evidenciarmos aos nossos aprendizes de tradução como estratégias previamente delineadas consolidam um trabalho tradutório e como a falta de um direcionamento coerente depõe.


Resenha publicada em Cadernos de Tradução, v.1, nº 27.
Florianópolis: PGET/UFSC, 2011.
Reproduzida com autorização da autora e dos editores.

Obra original:
Lefevere, André.
Translation, rewriting, and the manipulation of literary fame.
London: Routledge, 1992.



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