Tradutor / Co-Autor


Mauri Furlan



RESENHA de Memória de Tradutora, com Rosa Freire d'Aguiar.
(Florianópolis: Escritório do Livro / NUT/UFSC, 2004.)





Qual Fênix, que renasce a cada 500 anos, desperta-se novamente, nos tempos atuais — o período anterior teria sido o do Renascimento — para a importância não só do papel do tradutor, mas também do próprio tradutor. Não é essa a razão de nos perguntarmos diante de uma obra traduzida: "De quem é essa tradução?" A falácia do antiqüíssimo adágio italiano traduttore traditore ("tradutor traidor") não é sustentável, pelo menos não no sentido de que toda tradução seria inferior ao original. A concepção a-histórica de reprodução idêntica ao original é uma ilusão impossível e de pouca consideração: as línguas e os homens são históricos e diferentes entre si. Ao admitirmos a real possibilidade de se traduzir, temos necessariamente que admitir a real co-autoria da obra traduzida. Há bons e maus tradutores assim como há bons e maus escritores. Ler uma tradução significa, dito de forma simples, conhecer o pensamento e a arte do autor através da 'arte' do tradutor. Desde o século XV, com Leonardo Bruni — e essa foi a grande contribuição do Renascimento na reflexão sobre a prática de traduzir —, exige-se do tradutor, além do domínio das línguas de partida e de chegada e do conhecimento da matéria, que ele possua 'ouvido', ou seja, 'habilidade poética'. Uma vez que o tradutor conheça as línguas (filologicamente falando, com sua história, cultura, literatura, etc.) e a matéria envolvidas na tradução, a habilidade poética o ajudará a produzir na tradução estilos, ritmos, melodia, metáforas e demais recursos artísticos presentes no original. Os tradutores que possuem habilidade poética podem realizar belas traduções, sem complexo de inferioridade diante do original. Exemplos disso não faltam.

Rosa Freire d'Aguiar, jornalista e poliglota, pode orgulhar-se de apresentar em seu currículo a versão para o português de mais de 60 títulos. E de ser reconhecida como uma das mais competentes tradutoras no país. Sua habilidade poética comprova-se, ademais de em suas traduções, inclusive nos relatos de sua experiência de tradutora.

O Escritório do Livro acaba de lançar, em co-edição com o Núcleo de Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, o quarto volume de sua Coleção Memória do Livro, com o título Memória de tradutora, com Rosa Freire d'Aguiar. O livro contempla dois momentos da passagem de Rosa d'Aguiar por Florianópolis, em agosto de 2004: é fruto de entrevista realizada com Rosa Freire d'Aguiar por Dorothée de Bruchard, editora do Escritório do Livro, e Marlova Aseff, jornalista e doutoranda em Teoria Literária na UFSC, e da aula inaugural proferida por Rosa no Curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, da UFSC, em 02 de agosto de 2004, cujo texto é apresentado em apêndice.

Como uma boa contadora de histórias, Rosa d'Aguiar repassa os últimos 15 anos de sua vida, em que se dedicou à tradução, num relato agradável e sedutor. Em Memória de tradutora, com Rosa Freire d'Aguiar, a autora fala de sua formação, de sua atividade anterior como jornalista, de sua vivência no exterior; de sua relação com os autores, editores e revisores, e com a crítica; algumas leituras e traduções que a marcaram; e tece reflexões acerca do ofício de traduzir, e traduzir no Brasil. Entre os livros traduzidos por ela, elencados em apêndice, encontramos títulos como Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline; Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss; Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sabato; Vinte anos e um dia, de Jorge Semprún; O estrangulador, de Manuel Vázquez Montalbán; Goethe, de Pietro Citati, e mais algumas dezenas do melhor da literatura ocidental.

Rosa Freire d'Aguiar concebe a tradução como "compromisso": "Prioritariamente no sentido jurídico, ou diplomático, de acordo a que chegam as partes interessadas quando há uma controvérsia, um conflito, o que pressupõe concessões mútuas. Secundariamente, penso em comprometimento, no sentido de assumir uma obrigação com alguém, o que pressupõe responsabilidade" (p. 88). Embora declarando-se uma prática e não uma teórica da tradução, sua experiência a tornou uma profissional consciente das opções utilizadas, que se fundamentam em teorias. Frente a um dos maiores problemas da habilidade poética, o da reprodução do estilo, ela afirma: "deve-se respeitar, sim, o estilo do autor, ainda que feio, estranho, pesado em português; deve-se refrear a tentação de melhorar o texto" (p. 87). Contudo, não é dogmática nem preceptista, e não tem "uma resposta única nem sistemática" para os problemas teórico-práticos da tradução. Rosa d'Aguiar é consciente da historicidade, da visibilidade e da responsabilidade do tradutor. "Por quinze anos fiz jornalismo, há pouco mais de quinze faço tradução, e permito-me uma heresia: não acredito em jornalismo objetivo, assim como não acredito em tradução transparente. Acredito, sim, em jornalismo e tradução responsáveis, comprometidos com o que foi dito pelo entrevistado ou escrito pelo autor" (p. 94).

Memória de tradutora, com Rosa Freire d'Aguiar é mais do que um belo relato de uma grande tradutora: é uma verdadeira aula de tradução. Ademais, uma publicação deste tipo é contribuição e reconhecimento à pessoa do tradutor, que é um co-autor, e ao leitor de traduções, que se pergunta sobre quem é o intermediário do autor que ele lê.


Mauri Furlan
é professor na Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC.
Resenha publicada
no "Caderno Cultura" do Diário Catarinense em 13/11/2004.
Reproduzida com autorização do autor.



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