Biografia de uma Biblioteca


Miguel Sanches Neto



RESENHA de
Memórias esparsas de uma biblioteca, com José Mindlin.
&
Memórias de uma guardadora de livros, com Cristina Antunes.
(Florianópolis: Escritório do Livro / São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.)





Biblioteca é ser vivo, com direito a biografia, como todos nós. Nasce em um momento e, muitas vezes morre, geralmente depois do falecimento de quem lhe deu vida, ou para se incorporar a um acervo maior ou para se dispersar por inúmeras coleções.

Quem lida com livros, não sabe a diferença entre a casa e a coleção, tudo faz parte de um único espaço — foi assim com a mais afamada biblioteca particular do Brasil, a do bibliófilo José Mindlin (1914), que já nos deu um retrato dela em Uma vida entre livros (Edusp / Cia das Letras, 1999), retrato agora ampliado por dois volumes de depoimentos aos editores independentes Cléber Teixeira e Dorothée du Bruchard nos livros Memórias esparsas de uma biblioteca e Memórias de uma guardadora de livros, respectivamente de José Mindlin e de sua bibliotecária Cristina Antunes.

Estes títulos fazem parte da coleção "Memória do livro", inaugurada com as reminiscências de Eglê Malheiros e Salim Miguel — Memória de editor (2002). As obras partem sempre de longas entrevistas, recolhendo lembranças de personalidades-chave do mundo editorial brasileiro, e guardam o saboroso tom de conversa, em que somente o entrevistado fala, numa ausência estratégica dos entrevistadores. Os livros, graficamente impecáveis, são um tributo a esta paixão, que move o amante de livros, de editar sem interesses comerciais.

No depoimento de Mindlin, ficamos conhecendo mais algumas de suas aventuras de garimpeiro de raridades. Ele mostra como formou a biblioteca, as muitas andanças, os leilões, a perseguição permanente de obras praticamente inencontráveis. O colecionador surgiu nele no final da infância e no começo da adolescência, ao comprar um Discurso sobre a história universal, de Bossuet, impresso em Coimbra, em 1740.

Neste período biográfico, ainda estamos sob o fascínio das coleções — forma de possuir o mundo, de nos relacionarmos ativamente com ele. Colecionar é, nesta quadra da vida, se sentir não mais como hóspede na casa paterna, mas como alguém com universo próprio.

Em seu belo ensaio "Desempacotando minha biblioteca" (Rua de mão única. Brasiliense, 1993, 3ª edição), Walter Benjamin desvela a natureza do colecionador, movido pelo prazer de ter, pela excitação da compra, mas também pela necessidade de certezas num mundo volúvel. Se a literatura é o território movediço, a coleção de livros devolve-nos à exatidão das coisas. Não sem alguma ironia, Benjamin cita Anotole France: "O único conhecimento exato que existe é o ano de publicação e o formato dos livros". Entre a desordem e a ordem possível, entre o caos e o cosmos, o colecionador vai transformando, segundo Benjamin, sua coleção em uma "enciclopédia mágica", em que se manifesta um encontro inevitável: "o destino mais importante de cada exemplar é o encontro com ele, o colecionador, com a própria coleção". Esta experiência mágica faz com que este homem seja fiel à psicologia da criança, para quem colecionar o velho é possibilidade de renovação, pois permite uma reorganização das peças segundo outro princípio. E Mindlin desposa esta opinião, pois o grande objetivo da Biblioteca é, para o autor, "preservar o passado sem ficar mergulhado nele" (p.98).

O colecionador autêntico é o investidor sem a perspectiva do lucro, vivendo ainda na idade das paixões juvenis, quando as coisas valem pelo prazer que dão. Assim, José Mindlin encarna com perfeição este ideal, tendo dedicado sua vida e sua cultura à posse de livros e objetos afins, principalmente aos relacionados ao Brasil.

Benjamin lembra que possuir, para esta categoria de homens, é sinônimo de libertação: "Para o colecionador a verdadeira liberdade de todo livro é estar nalguma parte de suas estantes". Mas é também a forma de fazer a aproximação dos iguais, daqueles que foram separados. Uma das mais belas passagens das memórias de Mindlin trata dos documentos pertencentes ao poeta Tomás Antônio Gonzaga e à sua musa Marília de Dirceu, separados pelas lutas políticas. Ao comprar estas peças de proprietários diferentes, ele os tirou da prisão da posse meramente comercial, libertando-os: "com isso o casal, de certo modo, ficou morando aqui em casa" (p. 72). A casa do colecionador nega o tempo, reconstrói a história, dando-lhe feição independente das ideologias dominantes.

Mindlin herdou do pai a paixão de colecionar, pois o via sempre adquirindo quadros. Mas a leitura era deformação genética, marca familiar: "Meus pais e nós líamos muito, e em casa aconteceu o mesmo: nós dois [Guita e ele] e os quatro filhos não podíamos viver sem ler" (p.26). A garimpagem, o ato de compra, foi se tornando maior do que as possibilidades de leitura, o que fez com que a biblioteca tomasse proporções gigantescas, ocupando toda a residência, exigindo a construção de pavilhões no quintal e a locação de imóveis — parte dela vai agora para a USP.

É aí que entra o depoimento de Cristina Antunes, responsável pela pequena equipe que cuida da biblioteca desde que esta adquiriu uma espécie de maioridade social. O colecionador promove o caos, comprando tudo que lhe desperta o descontrolado desejo de posse amorosa. A bibliotecária pertence ao mundo da ordem, que tenta organizar a paixão, ficando sempre para trás, pois, de uma altura em diante, apesar de Mindlin ter diminuído o ritmo das aquisições, a biblioteca tomou vida própria e atrai doações e visitantes.

Em suas Memórias de uma guardadora de livros, Cristina desvenda o funcionamento desta incubadora de novas obras, pesquisas e projetos os mais variados. E isso em uma latitude familiar, em que todos estão envolvidos e em que os próprios funcionários tornaram-se cúmplices desta compulsão familiar, pois, como diz, Cristina, "a dinâmica da Biblioteca se confunde com a dinâmica da família, se confunde com a dinâmica da casa" (p.114). Mais ainda, a biblioteca invadiu a casa, tomou todos os espaços vagos e agora é freqüentada como instituição cultural.

O aumento ininterrupto do acervo é o projeto de todo o criador de bibliotecas, mesmo que saiba que ela não tem mais suas medidas, criando um descompasso entre o possuir e o ler. Isso faz com que muitos questionem a finalidade de uma coleção sempre crescente. Mas Mindlin conclui, generoso: "Outros lerão os livros que não li" (p.99). O colecionador, assim, transforma um hábito pessoal, nascido na fronteira da infância (momento em que o ser humano é mais autêntico), em uma empresa maior, coletiva, civilizadora, tornando-se o herói que, preservando um impulso lúdico, mantém a gratuidade numa época cada vez mais mercantilista.

Assim, só podemos repetir as frases de Walter Benjamin: "Bem-aventurado o colecionador! Bem-aventurado o homem privado!"


Miguel Sanches Neto
é escritor, crítico literário
e professor de literatura brasileira na Universidade de Ponta Grossa.
|www.miguelsanches.com.br|
Resenha publicada
no Gazeta do Povo do Paraná em 25/10/2004.
Reproduzida com autorização do autor.



| VOLTA PARA BIBLIOGRAFIA | Bibliofilia, bibliotecas & sebos |

| OUTRAS RESENHAS |