Do Papel ao pixel


Rogério Santos



RESENHA de O Papel e o Pixel. Do impresso ao digital: continuidades e transformações,
de José Afonso Furtado. (Florianópolis: Escritório do Livro, 2006.)





Quando escrevi a entrada anterior, estava sob a influência do livro de José Afonso Furtado, O papel e o pixel. Do impresso ao digital: continuidades e transformações, editado no Brasil no passado mês de Janeiro, leitura que eu acabava de fazer.

É que, do mesmo modo que se fala na substituição do cinema pelo vídeo, também se fala no desaparecimento do livro e emergência de suportes digitais. A internet, diz Furtado (p. 29) traduz-se no surgimento de novas formas de escrita, edição, distribuição e leitura, mas também de editores electrónicos, livrarias virtuais, obras hipertextuais e dispositivos de leitura de livros electrónicos.

Furtado chama a atenção para uma ecologia que evita a oposição simplista entre impresso e digital (p. 87), pois a passagem da cultura do livro em papel para o digital não é a morte de uma por outra mas antes uma transição, existe mais compromisso que ruptura. E apela à distinção produzida por Martin-Barbero entre palimpsesto e hipertexto: aquele põe-nos em contacto com a memória e a pluralidade dos tempos que acumulam os textos, este remete para a enciclopédia e para a intertextualidade (p. 184). O que nos conduz para a aceitação de três modos diferentes de inscrição e transmissão dos textos: manuscrito, impresso e electrónico.

O autor prefere olhar a mediação tecnológica no centro desta mudança, socorrendo-se de dois autores, Bolter e Grusin (1999), que desenvolveram o conceito de remediação: operação de transferência de conteúdos para outros suportes (p. 95). A remediação é a operação de translação-tradução-conversão para outros media e significa a lógica formal em que os novos media remoldam (refashion) formas anteriores dos media. Daí, desembocar em algo que escrevi acima: 1) os historiadores do livro mostram que uma técnica em si não é suficiente para originar uma cultura, 2) não se pode dizer que uma nova tecnologia aniquila as anteriores, 3) pois isso seria determinismo tecnológico, e 4) os novos media trabalham em conjunto com os media clássicos e com as mesmas forças económicas e sociais (pp. 104-105).

Há uma defesa concreta do livro, pois ele, com a sequencialidade da escrita, preserva o desenvolvimento da singularidade (p. 125). O papel e a tinta no livro garantem um equilíbrio entre portatibilidade e imutabilidade, algo que se perde nos media seguintes: desaparece a imutabilidade no telégrafo, telefone e rádio (p. 132), o que ocorre também no mundo digital. Neste, apesar da semelhança entre texto digital e texto impresso, o produto digital pode sofrer permanentes alterações, como se observa nas páginas da internet, constantemente em mudança. Credibilidade, confiança e qualidade são outras dificuldades que separam o mundo impresso do digital.

Outras distinções aparecem: do mesmo modo que a cultura do livro remetia para a relação entre passado e presente, a televisão remetia para o eterno presente e o computador mostra-nos o tempo real. Contudo, acrescento eu, a televisão também nos dá já o tempo real quando se realiza o directo. Creio que é por tudo isto que José Afonso Furtado nos fala de diferentes tempos: 1) tempo longo, feito de sequências lineares, 2) tempo curto, o do flash, zapping, replay e surfing, clip musical e spot publicitário, e 3) tempo largo, o do capital-tempo acumulado (biblioteca, artigos arquivados, memorização da informação), investimento que pode ser reutilizado na concretização de novos projectos (pp. 114-115).

Porém, a leitura de livros é cada vez menos importante no conjunto das práticas culturais, diz o autor (p. 169). E não se pense que o universo digital é do domínio do mais simples. Pelo contrário, é do mais complexo. Primeiro, pela necessidade de mediação tecnológica como acima identifiquei. Depois, porque o acesso configura modalidades de consulta múltipla: não linearidade, tabularidade, scrolling, links, ambiente multi-windows (p. 165).

O livro de José Afonso Furtado — que uma vez se refere aos blogues (p. 181) como fazendo parte do novo fenómeno de multiplicação da autopublicação na internet — representa "um panorama muito actualizado dos desafios que enfrentam a edição, a autoria e a leitura, em todos os seus espaços de produção e realização", conforme escreve Aníbal Bragança, o prefaciador brasileiro (p. 16). Distinção ainda para o projecto do livro, editado por uma associação sem fins lucrativos, em que relevo o projecto gráfico de Dorothée de Bruchard, que torna a obra uma pequena maravilha gráfica.

Licenciado em filosofia, José Afonso Furtado é director da biblioteca de arte da Gulbenkian, tendo sido já presidente do Instituto Português do Livro e da Leitura (actual IPLB), entre 1987 e 1991. Como docente, a sua actividade tem-se desenrolado em universidades como a Clássica de Lisboa e a Católica, na área de edição e da sociologia do livro e da leitura.


Rogério Santos
é doutor e professor na área de comunicação na
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
Resenha publicada
no blog do autor: | Indústrias Culturais |, a 18 de março de 2006.
Reproduzida com autorização do autor.



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