Paixão e cumplicidade fazem a

Biblioteca Guita & José Mindlin



Sônia van Dijck



RESENHA de
Memórias esparsas de uma biblioteca, com José Mindlin.
&
Memórias de uma guardadora de livros, com Cristina Antunes.
(Florianópolis: Escritório do Livro / São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.)





Dr. Mindlin e Cristina Antunes, reunidos, em primorosa caixa, falando da biblioteca. São vinte e um anos de trabalho em conjunto, ao lado de dona Guita, que cuida das encadernações e do restauro das peças. Mindlin e Antunes, selam a cumplicidade nessa publicação: Memórias esparsas de uma biblioteca (José Mindlin) e Memórias de uma guardadora de livros (Cristina Antunes). Os livros resultam de entrevistas concedidas, em Florianópolis, a Cleber Teixeira e Dorothée de Bruchard, dentro do projeto editorial "Memória do Livro", que dá nome à coleção, agora com três volumes (o primeiro, Memória de um editor, oferece os depoimentos de Salim Miguel e Eglê Malheiros). As apresentações, assinadas por Cleber Teixeira e por Ana Luíza Martins, previnem o espírito do leitor, preparando-o para o caminho que se abre em cada um dos volumes.

Resolvi começar a leitura pelo volume assinado por Dr. Mindlin; afinal, a biblioteca veio antes da guardadora do tesouro.

Em ambos, a grande personagem é a biblioteca: sua formação, as preciosidades que guarda, os cuidados que exige, a generosidade com que se abre a pesquisadores e estudiosos. O tom do discurso sublinha uma narrativa de uma aventura cultural e intelectual. E como se trata de narrativa de aventura, nada melhor do que o forjamento das "licenças", no pórtico do depoimento de Dr. Mindlin. E "licenças" míticas, pois são outorgadas pelas Graças que habitam a biblioteca: Elisa Nazarian, Rosana Gonçalves e a própria Cristina Antunes. E só elas podem permitir que se revelem os segredos da vida que está em silêncio naquelas prateleiras. E como são as Graças, a elas se submete Dr. Mindlin.

Como a vida de Dr. Mindlin, desde os 13 anos, esteve sempre envolvida com livros, até mesmo seu discurso autobiográfico informa sobre a formação da biblioteca, como garimpar livros, quais os sebos e livrarias que existiram, que amigos os livros lhe deram, no Brasil e mundo afora. Graças a sua prodigiosa memória, reconstitui a São Paulo da primeira metade do século XX, através do roteiro da demanda dos livros. Como nem tudo estava em São Paulo, partiu pelo Brasil e foi adquirindo livros e amigos, amando tanto a uns como aos outros. Muitas vezes, atravessou as fronteiras e foi encontrar o objeto de seu desejo no estrangeiro; e reencontrou amigos e fez novos. Não preciso mencionar a erudição de Dr. Mindlin, pois esse é caráter básico em um bibliófilo. Mas, faço questão de dizer que, como um contador de histórias, ele reconstitui um panorama cultural brasileiro, a propósito de falar de tipografias, sebos e livrarias, autores e obras raras. Ou seja: por causa da biblioteca, oferece uma galeria de nomes da cultura brasileira. E faz isso com uma generosidade exemplar, não só informando o leitor, mas, principalmente, ressaltando qualidades de cada personalidade mencionada. Evidentemente, Rubens Borba de Moraes tem lugar de destaque em tal galeria, seu grande parceiro de loucura mansa e inteligente, e presença na biblioteca da rua Princesa Isabel. Dr. Mindlin ressalta que tudo o que fez e vem fazendo tem o apoio entusiasta de dona Guita e mais a participação de seus grandes colaboradores na manutenção e na dinâmica da biblioteca, com destaque para as Graças, sem omissão dos nomes das antigas companheiras de trabalho: Luciana Ficarelli, Noêmia Cutin e Alice Fontes. Mas, é dona Guita sua cúmplice mais antiga, nessa aventura de construir a biblioteca; e ele menciona seu trabalho, aqui e ali; fala de sua especialidade como restauradora; conta que o incentivou na mania de comprar raridades; confidencia presente de namorados; parece até revelar prazer em falar de dona Guita, a mais fiel militante de seu partido, desde os tempos do Largo de São Francisco. O casal transmitiu aos filhos e netos o DNA marcado pela paixão definitiva pela cultura brasileira e pela biblioteca, de modo que há representantes das novas gerações envolvidos com as atividades da biblioteca. Os Mindlin juntaram um tesouro para a cultura brasileira.

Mas, Dr. Mindlin não conta tudo e deixa que o leitor se surpreenda quando for conhecer a biblioteca; ele não disse que será envolvido por mapas, obras de arte erudita e popular, objetos antigos, artefatos da cultura indígena, numa atmosfera que deixa feliz qualquer pesquisador ou estudioso de nossa identidade nacional.

No livro de Cristina Antunes, encontra-se uma bibliotecária privilegiada: por lidar com tal biblioteca, por ter tido a oportunidade de muito aprender com Dr. Mindlin, por ter os colaboradores constantes (Elisa, Rosana, Sérgio e Marivalda), por ter feito felizes amizades. Cristina viajou, conheceu bibliotecas, estudiosos, escritores; informou-se acerca das novas tecnologias; buscou sempre melhor servir à biblioteca, imbuída do espírito da importância do intercâmbio da informação e contaminada pela generosidade de Dr. Mindlin. De seu relato, apura-se uma estudiosa, uma intelectual bem formada em cursos no Brasil e no exterior. Sua comunhão com a biblioteca é notável, e até chegou a envolver os filhos nessa ou naquela fase de trabalho. Sei que nós outros pesquisadores dela muito pedimos; mas, sei que sua boa vontade e seu entusiasmo por nossas pesquisas são infalíveis. Se Cristina pôde fazer amizades que lhe são queridas, os pesquisadores têm oportunidade de conhecer uma profissional que sabe o caminho-das-pedras e nos trata com respeito. Suas companheiras de trabalho, Elisa e Rosana, são lembradas no depoimento, que não deixa no esquecimento Sérgio e Marivalda e as cozinheiras, tão inseridas no clima, que podem ser surpreendidas no bate-papo na copa/cozinha da Princesa Isabel, mencionando Jorge Amado e Drummond. Seu discurso feminino, marcado pela subjetividade, permite que se saiba de sua sofisticada formação intelectual e profissional e de sua, ainda inédita, experiência como poeta (restrita a poucos felizardos amigos). Tinha que ser em seu livro que estariam estampadas as fotos mais emotivas do ambiente da biblioteca, que começa antes que se abra a porta do Pavilhão (acredite quem quiser...), com a JABUTICABEIRA, sombra de tantos papos, enquanto se fuma um cigarro (na verdade, dois: eu fumo um e Cristina, outro), cuidada por Francisco, o homem dos sete instrumentos no jardim e carregador das preciosidades que passam de um ambiente a outro na biblioteca.

Ambos os livros se mostram em linguagem coloquial e Dr. Mindlin, jovialmente, declara que passa horas "... curtindo tudo quanto conseguiu reunir" (grifo meu). O discurso de ambos corre solto, e não é pelo fato de resultar da transcrição de entrevistas concedidas mais ou menos na sala de visitas dos amigos de Santa Catarina. É que Mindlin e Antunes são exatamente assim como revelam suas falas; tanto isso é verdade que os apêndices de cada um dos livros trazem textos assinados por Mindlin e por Antunes, guardando o mesmo nível de coloquialidade e de ausência de pedantismo, sem perder a elegância.

O privilégio não é só conhecer essa publicação; antes de tudo, é conhecer, ao vivo, Mindlin, Guita, Antunes, Rosana, Elisa, Marivalda, Sérgio e Francisco, todos da grande gangue em defesa da cultura brasileira - entrar na biblioteca é glória! é entrar no covil da memória nacional!

Na "bat-caverna", quando por alguns minutos cessa o ruído dos teclados das "meninas", pode-se até acreditar escutar o deslizar da pena de Vieira, escrevendo ao Provincial. Os fantasmas existem e andam na biblioteca... Quando Dr. Mindlin desce as escadas, já anunciando sete idéias, contando outras sete novidades, eles guardam o silêncio, em reverência a esse homem apaixonado, que coleciona, porque sabe que "outros lerão os livros que não [leu] li" (Mindlin: 99).

Subverter o recolhimento da biblioteca, em sessões lítero-recreativas, antes de encerrar meu horário de pesquisas rosianas, falando de , de minha descoberta de Luís Jardim, de filmes, ouvindo Cristina falar de concertos, Rosana de suas leituras e Elisa de suas descobertas na leitura das cartas do arquivo, sempre foi minha gostosa convivência com as Graças, além dos almoços e outras ocasiões...


Sônia van Dijck
é doutora em Letras (USP) e pesquisadora de arquivos.
|www.soniavandijck.com|
Resenha publicada
no Correio das artes, João Pessoa, ano 54, n. 86, 6-7 nov. 2004, p. 6-7.
Suplemento literário de A União.
Reproduzida com autorização da autora.



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