Geir Campos

O poeta, o editor & a Carta aos livreiros do Brasil

Aníbal Bragança


Excerto de A Profissão do Poeta & Carta aos Livreiros do Brasil
Organizado por Aníbal Bragança e Maria Lizete dos Santos
(RJ: Imprensa Oficial, 2002)



Geir Campos, escritor brasileiro incluído pela crítica na famosa Geração de 45, que renovou a poesia brasileira sob “um estatuto ambíguo de tradicionalismo e modernidade”, foi considerado por Alfredo Bosi “um dos 'virtuoses' de sua geração”. Um “habilíssimo artista”, assim o definiu Manuel Bandeira. Nascido em 28 de fevereiro de 1924 em São José do Calçado (ES), Geir foi piloto da marinha mercante e ex-combatente civil na Segunda Guerra Mundial. Bacharel em direção teatral (FEFIERJ/MEC, hoje UNI-RIO), mestre e doutor em Comunicação Social pela Escola de Comunicação da UFRJ, da qual foi professor. Um dos fundadores do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro e da Associação Brasileira de Tradutores, ABRATES, — hoje, Sindicato Nacional de Tradutores — de que foi presidente. Um dos organizadores, com Moacyr Félix, dos Cadernos do povo brasileiro, Violão de rua, editados em 1962 pelo CPC da UNE e Civilização Brasileira, o poeta esteve sempre engajado nas lutas de seu tempo. Chegou a tentar a política partidária, quase sendo eleito vereador em Niterói, pela legenda do Partido Socialista Brasileiro (1962). Jornalista, colaborou em revistas literárias e em alguns dos jornais mais importantes de Niterói e do Rio de Janeiro, como o Diário Carioca, Correio da Manhã, Última Hora, O Estado, Diário de Notícias, Para Todos, Letras Fluminenses e Jornal de Letras e, também, durante um período, no jornal de sua terra natal A Ordem. Radialista, apresentou na Rádio MEC o programa Poesia Viva por mais de vinte anos. Diretor da Biblioteca Pública Estadual de Niterói (1961-1962), transformou-a num verdadeiro centro cultural. Pertenceu à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), ao Pen Clube do Brasil, à União Brasileira de Escritores (UBC), à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) e ao Grupo de Amigos do Livro, hoje Grupo Mônaco (Niterói). Autor da letra do hino oficial de Brasília, em parceria com Neusa França, autora da música. Publicou significativa obra ensaística sobre tradução, tendo recriado em nosso idioma obras de Rilke, Brecht, Kafka, Herman Hesse, Walt Whitman, Shakespeare e Sófocles, Autor de Rosa dos rumos, Da profissão do poeta, Canto claro & poemas anteriores, Operário do canto, Cantigas de acordar mulher, Metanáutica, Canto de peixe, dentre outros livros de poesia. Sua bibliografia inclui livros de contos, peças teatrais, obras de referência, literatura infanto-juvenil, ensaios e teses. Deixou inéditos.


A vida de Geir parece ter sido sempre ligada ao livro. Filho de pai dentista e mãe professora, estudou como interno no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, o que deve ter fortalecido sua relação com a cultura escrita. De bom leitor passou a estudioso de línguas e literaturas. Morando em Niterói (RJ) desde 1941, logo conheceu os jovens do Grêmio Literário Humberto de Campos e a livraria-engraxataria Mônaco. Tornou-se uma espécie de guru na vida literária da cidade, orientando os escritores interessados em conhecer as novas tendências literárias, nacionais e estrangeiras. Trouxe para autografar nas reuniões matinais do Grupo de Amigos do Livro, presidido por Sávio Soares de Sousa, na então já Livraria Ideal, nomes como Astrojildo Pereira e Moacyr Félix, seu amigo da vida inteira.

Iniciou sua vida de escritor, ainda nos anos 40, publicando na imprensa contos e poemas, originais e traduzidos. Seu primeiro livro Rosa dos rumos, de poesia, foi publicado em 1950. Ao final da década, já havia publicado nove livros de poesia, — recebendo em 1956 o Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Distrito Federal pela obra Canto Claro & Poemas anteriores — além de suas traduções Poemas de Rainer-Maria Rilke, Parábolas e Fragmentos de Kafka, e (com Antônio Bulhões) A alma-boa de Setsuan, de Brecht, dentre outras.

Em 1951, Geir Campos criou, em Niterói, com o poeta Thiago de Melo, as Edições Hipocampo. A iniciativa se insere num dos momentos mais significativos da história das artes gráficas do país. Na mesma época surgiram outras editoras artesanais de livros artísticos: no Rio de Janeiro, a Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, dois anos antes; em 1950, em Salvador, a Dinamene, de Pedro Moacir Maia; em 1954, em Recife, O Gráfico Amador, de Gastão de Holanda, Aloísio Magalhães, Orlando da Costa Ferreira e Sebastião Uchoa Leite; em 1955, no Rio de Janeiro, a Philobiblion, de Manuel Segalá. Em Barcelona, na Espanha, o poeta e cônsul João Cabral de Melo Neto continuava a fazer as tiragens das belas edições de O Livro Inconsútil.

As Edições Hipocampo foram um empreendimento nascido do amor à poesia e às artes gráficas. Geir e Thiago alcançaram, em dois anos, a marca de vinte edições. Foram publicados textos poéticos, em prosa e verso, de autores consagrados e novos, todos ilustrados primorosamente por grandes artistas. Os livros eram compostos tipograficamente e diagramados pelos próprios editores, numa gráfica de fundo de quintal, na mesma casa da Rua Riodades, no bairro do Fonseca, em Niterói, onde se reunia o Grêmio Literário Humberto de Campos. A oficina era dirigida por Antônio Marra e Armando Cabral Guedes, que permitiam a Geir e Thiago que trabalhassem após encerrar o seu expediente. Os editores, que usavam sempre o papel Ingres, algumas vezes conseguiam vencer a resistência dos donos da gráfica e eles mesmos manejavam a prensa manual para imprimir os exemplares. O processo de acabamento era feito em casa de Geir, com a colaboração de toda a família. Dobravam-se as capas em forma de envelope, onde se inseriam as folhas soltas.

As edições tiveram tiragens que variaram entre 70 e 150, mas, em sua maioria, foram de 116 exemplares. As vendas, também a cargo dos editores, eram feitas antecipadamente, por subscrição, para assinantes, e os livros logo se esgotavam.

Rosto de Com o vaqueiro Mariano, de Guimarães Rosa, 1952.

Gisela Creni, autora de Editores artesanais brasileiros, a quem chama de “heróis civilizadores”, analisa e descreve em sua obra todas as Edições Hipocampo, que incluem nomes como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, João Guimarães Rosa, Fayga Ostrower, Santa Rosa, Darel Valença e Iberê Camargo.

Objeto também da atenção da pesquisadora do livro de arte no Brasil, Catarina Helena Knychala, as Edições Hipocampo, cuja coleção para bibliófilos encerrou-se em 1953, inscreveram-se na história editorial brasileira como uma das experiências mais bem-sucedidas no campo das edições artesanais. Segundo José Mindlin, um de seus subscritores, as Edições Hipocampo formam entre as coleções de bibliófilos mais importantes produzidas no Brasil. Os raros exemplares hoje existentes, quando aparecem no mercado, são objeto de cobiça de colecionadores amantes de belos livros. Esta feliz aventura como editor talvez tenha sido a experiência mais visceral que Geir teve com o livro enquanto suporte de cultura e arte. Mas não a única.


Em 1956, quando presidia o Sindicato Nacional de Empresas Editoras de Livros e Publicações Culturais — hoje Sindicato Nacional de Editores de Livros, SNEL, Ênio Silveira chamou Geir Campos para assumir o cargo de relações públicas da entidade. Nesse ano, de 5 a 9 de novembro, realizou-se, na então capital federal, o Terceiro Congresso de Editores e Livreiros do Brasil. Geir participou ativamente. Chegou a ser elogiado pelo “zelo e cuidado” no discurso de encerramento feito pelo livreiro Carlos Ribeiro, vice-presidente do Sindicato. Esta experiência antecedeu a elaboração do ensaio Carta aos livreiros do Brasil, uma minuciosa e brilhante análise do sistema editorial brasileiro na época. Feito a partir da crítica às teses aprovadas nesse congresso, o trabalho mereceu menção honrosa no concurso ao Prêmio Monteiro Lobato, promovido pela Associação Brasileira do Livro (ABL). Ainda hoje pode ser lido com proveito pelos estudiosos e profissionais.

Nele, afirma Geir, “a impressão geral é de que o livro, com todos os seus mágicos poderes, prima por ser uma fonte de problemas para todos aqueles que a ele se devotam, e por isso mesmo precisam todos praticar esse devotamento ao livro como uma espécie de sacerdócio”. Do autor ao leitor, passando pelo gráfico, o editor, o distribuidor, o livreiro e o Estado, o poeta a todos contempla com seu olhar grave, mas generoso.

Ao garantir que “a distribuição é o ponto de estrangulamento de todo o negócio de livros, no Brasil, [qu]e envolve, além de problemas eminentemente técnicos (...), certo número de questões éticas”, reclama uma regulamentação do comércio de livros “que tantos benefícios poderia trazer, [e que] ainda não se fez”.

Ao criticar certo editor que “costuma dizer que ninguém deixa de comprar livro por ser caro, quando gosta”, concorda, já que “até certo ponto, o gosto da leitura e o amor aos livros sempre foram apanágio da elite social e econômica do País”, mas que a questão a enfrentar é a da “ampliação do mercado, a conquista de novos compradores, a busca de novas simpatias para com essa mercadoria em todos os sentidos perigosa — que é o livro. E quando se trata dessa conquista, dessa procura, desse ampliamento, ver-se-á que um dos entraves mais pesados é justamente o preço do livro no Brasil, quer se trate de produto nacional ou de importação”. E conclui: “É quando o leitor põe o pé na porta de uma livraria que começam a fundir-se todos os problemas, sociais e econômicos, culturais e políticos, que cercam a produção e a circulação do livro em nosso País”. E “sobre esse freguês desconhecido é que convergem as atenções do editor, do autor, do distribuidor, do revendedor, do anunciador: porque esse homem é o que vai à livraria em busca de uma determinada mercadoria. E tudo terminaria aqui se no pacote sobraçado esse homem saísse levando para casa um artigo de consumo qualquer — um brinquedo, um sapato, um queijo, um vidro de perfume... Entretanto, a mercadoria que esse homem leva, ao sair da livraria em qualquer ponto do País, pode ser capaz de influir no seu comportamento individual e social, pode ser capaz de fazê-lo voltar à livraria ou nunca mais tornar a pôr lá os pés, pode fazer dele um otimista ou um cético, pode orientá-lo para o bem e para o mal (quaisquer que sejam esse bem e esse mal no conceito do grupo a que pertence)”.

Escrito numa época em que o país estava “em acelerado ritmo de crescimento [onde as] necessidades culturais e técnicas crescem, em quantidade e qualidade, dia para dia”, Geir Campos lembra que “em nossa própria Constituição Federal há um artigo estabelecendo expressamente que 'o amparo à cultura' é dever do Estado” e que “não pode haver 'amparo à cultura' sem cuidados especiais com a instrução e com a formação da personalidade dos cidadãos; por isso compete ao Estado fundar e manter escolas públicas, bibliotecas, museus, conservatórios, cinematecas, instituições culturais as mais variadas”, mas que nenhuma dessas instituições “funcionará de modo satisfatório sem a ajuda silenciosa e permanente do livro”, o que o torna um “problema de Estado”.

Ao analisar a atuação do então Instituto Nacional do Livro, reclama que “nunca se cogitou de estabelecer para as bibliotecas públicas algo como uma estante mínima de cultura universal, mais uma estante mínima de cultura nacional, mais uma estante mínima de conhecimentos gerais, cada estante com, digamos, cem livros escolhidos”. Em vez disso, afirma, o que se encontra “são bibliotecas arroladas (no Guia das Bibliotecas Brasileiras, 1955) com acervos de menos de vinte volumes, que mal bastariam para formar uma prateleira, quanto mais um estabelecimento de leitura coletiva”.

No nosso país, em que tão poucos estudos existem sobre o mundo do livro, numa perspectiva ao mesmo tempo sociológica, técnica, empresarial e cultural, é extremamente útil o ensaio de Geir Campos. A Carta aos livreiros do Brasil, escrita há mais de quarenta anos, aponta para problemas e soluções que, infelizmente, ainda hoje não foram enfrentados seriamente, com as conseqüências sociais desastrosas que todos conhecemos. Num momento em que, mais uma vez, se elabora um anteprojeto da Lei do Livro, sua leitura é indispensável, embora tardia. A realidade brasileira mudou, e muito, mas o acesso ao livro e às práticas da leitura continuam sendo, em grande medida, “apanágio da elite social e econômica do País”.

Geir Campos não foi apenas um artesão da palavra e um operário do canto. Esteve em todas as frentes de ação pelo fortalecimento do livro, como editor, como bibliotecário, como tradutor, como líder de categoria, como professor e como autor. Autor, diga-se, de uma obra sólida e múltipla, rica e diversificada, que marcou a literatura brasileira da segunda metade deste século.

Faleceu em 8 de maio de 1999, aos 75 anos, em Niterói, RJ.

ANÍBAL BRAGANÇA
é professor adjunto do Depto. de Comunicação Social da UFF
e autor de Livraria Ideal, do cordel à bibliofilia.
Texto gentilmente cedido para este site.


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