Caso de amor com os livros: José Mindlin

Carla Pessotto


Publicado originalmente no jornal A Notícia (Anexo), 03/11/2002.

José Mindlin com Dorothée de Bruchard, na sede da Editora Noa Noa, Florianópolis, 2002.

Quando, aos 13 anos, o empresário José Mindlin começou a comprar livros em sebos de São Paulo, ele não imaginava o resultado da investida. Setenta e cinco anos depois, Mindlin é considerado o maior bibliófilo brasileiro, reunindo uma coleção com cerca de 29 mil títulos, algo próximo a 45 mil volumes, muitos deles verdadeiras raridades. “A leitura é que conduziu à formação da biblioteca”, conta. “Para mim, é uma compulsão patológica tanto a aquisição quanto a leitura”, afirma ele, que esteve na capital [Florianópolis] na semana passada participando de uma palestra promovida em conjunto pelo curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pelo Escritório do Livro.

Filho de pais russos, imigrados para o Brasil no começo do século passado, advogado, fundador da Metal Leve (fabricante de autopeças), repórter de O Estado de S.Paulo e ex-secretário de Cultura do governo Paulo Egydio Martins, Mindlin define as etapas do processo em que se estabelece a compulsão patológica, o “verdadeiro vício”, pelos livros. “Primeiro se começa com as edições comuns. Depois vem o interesse pelo livro bonito, com ilustrações e bem diagramados. A próxima é a busca das primeiras edições de um determinado título. Passa-se, então, a procurar exemplares autografados. A última etapa é a consciência da raridade. E aí você está definitivamente perdido”, afirma ele, com um bom humor que é uma das suas características.

Até o ano passado, ele lia de seis a oito livros por mês. Agora, com problemas de visão, precisa recorrer a uma lupa, dificuldade que reduz um pouco este volume. Mesmo assim, mantém uma pilha deles na cabeceira e um sempre próximo à mão, que lhe permite ler “em uma soma de pequenos períodos”. “Minha preferência é por ficcão e crítica literária. Atualmente estou lendo A Mãe de sua Mãe e suas Filhas (Editora Globo), de Maria José Silveira”, conta. A escolha dos títulos que vão compor a biblioteca é totalmente intuitiva. “Quando eu vejo um livro que me atrai, mesmo sem ter nenhuma referência, eu compro e normalmente não me arrependo.” Antes, somente eram adquiridos aqueles que interessavam pessoalmente a Mindlin, sua mulher ou filhos. Agora que a coleção virou referência, outra parte foi agregada, com história natural e geografia, entre outros.

Consciente de que o acervo literário formado ao longo das quase oito décadas não poderá ser refeito caso se disperse, Mindlin já traçou planos para a biblioteca. A idéia é montar uma fundação de direito privado, fazendo a doação da parte brasileira — cerca da metade dos títulos. “A instalação será num prédio da Universidade de São Paulo (USP), mas com o gerenciamento pela fundação num período de 99 anos”, detalha. Como há muitos livros raros, o acesso será restrito a pesquisadores.

Com Dorothée de Bruchard e Cleber Teixeira, na sede da Editora Noa Noa,
durante a entrevista para o livro Memórias esparsas de uma biblioteca. Florianópolis, 2002.

O intelectual admite que manter uma biblioteca em casa é algo que dá prazer, mas argumenta que “ter o livro não deveria ser a condição para se ler”. Para ele, é obrigação do governo — com a colaboração dos empresários — a formação de bibliotecas, principalmente em escolas públicas de ensino fundamental e médio. Com isso, estaria-se estimulando o hábito principalmente entre as crianças. “O interesse cada vez maior pela leitura também formará um grupo maior de patrocinadores. Quem gosta de ler tem o prazer de que isso seja transmitido”, ensina ele, que é considerado um dos mais importantes mecenas brasileiro do livro. “Eu tenho procurado sempre inocular o vírus da leitura e do gosto pelos livros para um maior número de pessoas.”

Esse incentivo é papel de todos, já que a sociedade é um conjunto e não compartimentos estanques, afirma Mindlin. Neste esforço, a escola representa um dos fatores mais importantes, “mas tem que começar pelos professores. Eles têm que ler e gostar para poder transmitir com eficiência. Se não têm amor, dificilmente irão transmitir isto”, argumenta. E a leitura deve ser vista como fonte de prazer e não como um compromisso curricular. “Ninguém gosta de fazer as coisas por obrigação. O que a criança lê é mais ou menos irrelevante. Adquirindo um hábito, a medida em que cresce, ela desenvolverá o discernimento sobre a qualidade.”

A respeito da qualidade da literatura brasileira, ele diz que há bons autores e outros nem tanto. Mesmo sem citar nomes, faz referência indireta a Paulo Coelho, recém-empossado na Academia Brasileira de Letras (ABL): “Há um escritor que está para a literatura assim como o bispo Edir Macedo está para a religião”, provoca. “Aquilo não é literatura, mas não podemos generalizar, temos bons autores e há edições populares bem acessíveis, com bons textos”, afirma.



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