Paradoxos da profissão impossível


Boris Schnaiderman



RESENHA de Memória de Tradutora, de Rosa Freire d'Aguiar.
(Florianópolis: Escritório do Livro / NUT/UFSC, 2002.)






Memória de Tradutora, de Rosa Freire d'Aguiar, reafirma
bases que norteiam este complexo compromisso literário.



A tradução é uma atividade paradoxal por excelência. Aliás, como afirmou José Ortega y Gasset num estudo magistral, Esplendor y Miseria de la Traducción (Obras, Madrid, Espasa-Calpe, 1943), ela é, em princípio, impossível. Pois, se lemos num texto brasileiro a palavra "floresta", logo pensamos na floresta amazônica, num mundo de vegetação luxuriante e diversificada, ou nas queimadas que a devastam atualmente, enquanto um alemão, quando lê wald, vê mentalmente uma floresta européia, regular e uniforme, com as árvores mais agrupadas por espécies. Mas, impossível em princípio, a tradução tem de ser feita. E Ortega y Gasset afirma então que tudo o que o homem realiza de grande situa-se no campo do impossível.

Este e outros paradoxos vêm logo à lembrança com a leitura de um livro notável, Memória de Tradutora, com Rosa Freire d'Aguiar, da coleção Memória do Livro, publicado pelo Escritório do Livro, de Florianópolis. O volume contém uma entrevista da tradutora com Dorothée de Bruchard e Marlova Aseff (sendo desta última também a edição do texto), além de um prefácio de Clélia Piza e do trabalho da entrevistada "O Compromisso da Tradução", apresentado como aula inaugural do Mestrado em Estudos de Tradução, proferida em agosto de 2004 na Universidade Federal de Santa Catarina.

Sem dúvida, a simples existência deste livro constitui outro paradoxo. Muito bem feito materialmente, bem acabado, e contendo matéria tão importante para todos os que se interessam por esse tema, ele dificilmente será encontrado em livrarias do Rio ou de São Paulo. Trata-se de um velho problema: obras de grande relevância aparecem editadas longe dos centros maiores e acabam tendo uma circulação geograficamente limitada, quando o justo seria circularem pelo território nacional. Sim, é um velho problema, sobre o qual nunca é demais insistir.

Rosa Freire d'Aguiar teve atuação importante no jornalismo, mas, tendo residido alguns anos em Paris, passou a dedicar-se a partir de certo momento à tradução. Nessa atividade, alcançou mestria inegável e o vulto de sua produção chega a ser quase um enigma, dado o nível atingido. Pois, em pouco mais de 15 anos, chegou a traduzir mais de 60 livros, alguns bem volumosos. Ao mesmo tempo, ela dá conta das pesquisas trabalhosas para resolver bem os seus problemas de tradutora.

Chega a ser impressionante o relato que faz de seus encontros com o buquinista André Bernot, fanático pela obra de Céline, e que tentou vender-lhe os Panfletos desse autor, "delirantemente anti-semitas, a ponto de pregar o ódio racial e a morte dos judeus, e que valeram a sua desgraça para o resto da vida e estão até hoje proibidos".

Aqui, chegamos certamente a uma contradição dolorosa. Mais uma vez em princípio, para se traduzir bem um autor, é preciso identificar-se com o original, o texto traduzido é como que a expressão de uma segunda natureza do tradutor. Mas, ao mesmo tempo, o autor da obra é um outro, eu não posso encampar as suas idiossincrasias, os seus rancores e preconceitos.

Tive que lidar com este problema desde a minha primeira tradução de Dostoiévski. Não há como aceitar o seu chauvinismo grão-russo, o seu anti-semitismo e a sua prevenção contra os poloneses. E, ao mesmo tempo, tenho que dá-lo, na língua de chegada, em todo o seu furor e desvario. Afinal, a literatura não pode ser reduzida à amenidade dos jogos florais. Por conseguinte, em lugar de uma simples identificação, acaba-se tendo uma relação de amor e ódio. Chega-se, até, a uma nova categoria: a tradução raivosa, isto é, aquela que se faz com raiva do autor.

Rosa Freire d'Aguiar lidou com este problema em toda a sua pungência. Fascinada por Céline, dando o melhor de si para transmiti-lo numa linguagem adequada em português, realizando para este fim giros de linguagem incríveis, afirma porém: "Céline é uma mistura de gênio e de celerado, mas, sobretudo, um homem de sensibilidade doentia." Diz também: "Ninguém desculpa o anti-semitismo de Céline, mas meio século depois de sua morte já não se pode invocar automaticamente esse sentimento para rejeitar sua obra in totum." Tudo verdade, não há dúvida. Mas como dói!

De um jeito ou de outro, no entanto, ela realizou verdadeira proeza. Que o confirmem os que já leram as suas traduções dos romances de Céline Viagem ao Fim da Noite e De Castelo em Castelo (ambos editados pela Companhia das Letras). Aliás, em relação a este último, chega a exclamar: "Foi o meu Everest!"

Escreve: "O tradutor é um obcecado." E esta obsessão sente-se no decorrer de todo o livro-entrevista. Para ela, o tradutor é, sobretudo, um indivíduo que duvida e põe em questão tudo o que realiza.

Enfim, sente-se que ela nos transmite neste livro uma elevada postura ética, uma dedicação integral à sua tarefa. Isto pode ser confirmado, por exemplo, pelo apêndice à sua tradução do romance De Castelo em Castelo. (Romance mesmo? A tendência atual à diluição das fronteiras entre os gêneros permite talvez chamá-lo assim.) Francamente, um leitor que não esteja bem a par do ambiente na França durante a Segunda Guerra Mundial e pouco depois não poderá orientar-se no livro sem esta ajuda da tradutora.

Algumas de suas formulações resultam de um prolongado convívio com os textos traduzidos. Veja-se, por exemplo, o que diz sobre Viagem ao Fim da Noite. Ela o julgava impossível de traduzir, até se dar conta do seguinte: seu texto, "mais que língua popular, é língua oral, ou forma oral da língua". E assim ela o traduziu, incorporando à tradução a nossa oralidade.

Em certo momento afirma: "Sou uma prática e não uma teórica da tradução." Ora, todo tradutor que escreve com inteligência e conhecimento de causa sobre o seu trabalho acaba trazendo uma contribuição teórica. E isso pode ser constatado no decorrer de todo este livro.

Finalmente, já que estamos tratando dos paradoxos inerentes à tradução, lembremos o que ela diz com referência à compensação que o tradutor recebe geralmente pelo seu trabalho: "Em 2002, uma pesquisa feita na Espanha sobre os tradutores mostrou que essa é a profissão mais mal paga do mundo, levando-se em conta o trabalho exigido deles. O tradutor é um profissional altamente qualificado, tem de manejar à perfeição, no mínimo, dois idiomas, acumular os mais diversos conhecimentos. (...) Tanto trabalho em troca de quê? Às vezes tenho a impressão de praticar uma atividade clandestina: o reconhecimento intelectual e social do tradutor, embora crescente, ainda é modesto: é raríssimo que alguém, já não digo elogie, mas comente o seu trabalho. (...) A grande incógnita é por que gente tão preparada escolhe se dedicar à tradução literária, e não a atividades mais bem remuneradas. Não tenho resposta. No máximo uma pista."

Se tudo isto é mais do que verdade, reconheçamos que, desta vez, com o seu instigante livro, Rosa Freire d'Aguiar merece não apenas comentário, mas uma verdadeira discussão, tal a importância dos tópicos por ela abordados.


Boris Schnaiderman (1917-2016)
foi escritor, tradutor, crítico literário
e professor de literatura na USP.
Resenha publicada
no "Suplemento Cultural" do O Estado de São Paulo em 16/10/2005.
Reproduzida com autorização do autor.


Veja | Entrevista com Boris Schnaiderman |
Veja excerto de / Memória de Tradutora /


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