[...] Os livros aparecem como a grande chave para desvendar um dos mais singulares personagens da cena literária gaúcha, que acaba de ganhar uma memória biográfica compilada pelo jornalista Renato Mendonça. Trata-se de um apanhado de entrevistas narradas em primeira pessoa. Mais do que contar suas lembranças, Arnaldo faz um inventário da insensatez que é trabalhar com livros num país como o Brasil. "É o relato de uma vida de luta, com vários tropeços, mas também triunfos, sempre ancorada no sonho de ter, ler, vender e fazer livros", diz Mendonça. [...]
Além das aventuras do escritor, o livro resgata uma Porto Alegre que respirava cultura nos anos 60. "Das entrevista surgiu uma cidade efervescente, principalmente no Centro. Uma cidade em que literatura, teatro, música, política e tipos folclóricos se misturavam com naturalidade", sintetiza o autor. [...]
Autor de poucas obras, Arnaldo formou gerações de leitores ao entregar sua vida à tarefa de difundir a literatura. Como escritor, é respeitado especialmente por dois romances: Réquiem para um Burocrata (1983) e A Ceia do Diabo (1994, indicado ao Jabuti). Foi dono de livrarias, continua como um devoto comerciante de obras raras (nas quais é um especialista) e, ainda por cima, sempre que pode está pesquisando sobre seus objetos de desejo. É autor de um dos maiores best-sellers do país na área, Breve História do Livro. "Até hoje, é o que mais vende na minha bibliografia", ironiza Arnaldo.
Toda uma vida dedicada à leitura não rendeu frutos. "A época em que mais ganhei dinheiro na vida foi quando vendi panelas pelo interior do Estado", diz, sem nenhum rasgo de amargura. À frente da Livraria Vitória, criada em 1961, conheceu a glória e a desgraça: instalada em plena Rua da Praia, em frente à Praça da Alfândega, era ponto de referência para comunistas e intelectuais pela sua versátil mistura de Jesus com Marx. "Era uma livraria combatente", lembra Arnaldo, que idealizou a venda casada da Bíblia com o Manifesto Comunista por 14 cruzeiros. Um estouro.
Mas o golpe de 1964 acabou com a utopia de Arnaldo e de seu sócio, Brutu Gemignani: chegando ao poder, os militares recolheram o acervo de livros da loja e deixaram os livreiros sem capital de giro. Além disso, exigiram a troca do nome do estabelecimento, alegando que os donos — dois comunistas de carteirinha — tinham sido derrotados pela revolução. Surgia então a Coletânea, um dos pontos mais tradicionais da capital e que até hoje subsiste como banca ao lado do Margs.
Arnaldo também resistiu. Teve outras livrarias, sonhou com a revolução socialista (apesar de nunca ter pegado em armas), persistiu no ofício e vê a vida, às vésperas de completar 75 anos, com a mesma perspectiva de sempre. Não sente muitas saudades do passado, mas diz que não quer morrer sem ter outra livraria (a última que ele comandou fechou em 2005). Paradoxalmente, não quer saber mais de livros novos: dedica a maior parte do tempo a garimpar obras raras. Sobre sua obsessão, diz, em tom resignado: "Paixão não se explica". [...]
Flávio Ilha é jornalista.
Resenha publicada
na | Revista Aplauso |, Porto Alegre, 2006, n. 78.
Veja excerto de / Um livreiro de todas as letras /