A Livraria Vitória
Arnaldo Campos
(1932 - 2012)
Entrevista a Renato Mendonça
Excerto de Um Livreiro de todas as letras
(Florianópolis: Escritório do Livro / Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006).
A livraria se tornou um centro cultural da cidade. Ali, os caras que estavam começando a escrever traziam seus contos e davam para os amigos lerem. Eu fazia isso também. Meu primeiro leitor foi o Manuel Tomaz Sarmento de Sá Barata Neto, filho de um famoso médico do Rio Grande do Sul. Ele tinha sido diretor do Instituto Estadual do Livro (IEL), conhecia muita literatura. Aí, ele pegava a caneta, fazia as correções, sugeria tirar aquilo, botar outra palavra, levar o verbo para o particípio passado, coisas assim. Tinha também a Maria Elizabete Souza Lobo Garcia, mulher do Marco Aurélio Garcia. Eu dava os meus contos para ela ler também. Eu tenho o depoimento dela arquivado lá em casa. Enfim, a livraria era um centro cultural, embora pequenininho. Seguidamente, não cabia todo mundo dentro da livraria. Ficava gente na frente, esperando sua vez de ser atendido, porque não dava para entrar. Se eu vivesse 300 anos, morreria apaixonado por aquela livraria! Ela se metia em tudo. Não tinha acontecimento na cidade em que a livraria não se envolvesse, fosse estrela de teatro desfilando, fosse confusão na rua. Tem uma foto que mostra um sujeito ensangüentado sendo puxado para dentro da livraria, quando da baderna da visita do Lacerda em 1963.
Quando chegava o fim de tarde, a partir de 18h, o pessoal do Teatro de Equipe começava a chegar. Mas não eram só homens que freqüentavam a livraria. Durante o dia, apareciam algumas mulheres. Naquele tempo, elas liam muito menos do que hoje, procuravam especialmente revistas de moda, fotonovelas... Tínhamos algumas freguesas, como a Frida Levin, que até hoje é minha amiga. A Frida chegava lá para me perguntar qual livro que ela poderia dar de presente para a sobrinha, ou que iria ler no fim de semana.
Foi aí que eu comecei a escrever mesmo. Era muito estimulante estar em contato com livros, com escritores e com leitores. Eu sentia satisfação ao saber que alguém estava lendo. E, na medida em que eu lidava com leitores, às vezes eu ficava curioso, observando a reação deles. Às vezes, olhava um cliente e me perguntava: “O que será que ele está achando desses livros?”. Eu invertia a situação, porque normalmente é o leitor que te pergunta: “Esse livro aqui, como é que é? Do que ele trata? E esse personagem, como é que é?”. Mas às vezes eu invertia e perguntava “O que tu achaste daquele livro?”. Quando a livraria estava cheia, a observação ficava mais difícil porque a gente tinha que evitar o chute, o roubo de livros. Fora disso, a gente fica observando o jeito do ser humano, o que ele faz dentro de uma livraria, como é que ele senta, como é que ele trata o livro.
Nos fundos da livraria, embaixo da escada, criamos um sebinho, que era freqüentado entre outros pelo Mario Quintana. Ele ia com livros, levava aqueles da Série Argonauta e da Série XX, da Editora Livros do Brasil, de Lisboa. O Mario gostava muito de ler livros policiais e de ficção científica. Era um leitor inveterado. Ele também não dormia, também era notívago. Então, o que Mario fazia: chegava lá com uma pilha de livros que já tinha lido para fazer troca. Nós fazíamos a troca com ele na base de dois por um: ele deixava dois e levava um. Mario não era um cara muito fácil de se conversar. Não era agressivo, mas tinha uma certa dificuldade de lidar com as pessoas. Talvez porque fosse muito brilhante. Ele era um cara fantástico, fazia piada de tudo, tinha uma ironia ferina. Então, acho que a gente se sentia — eu, pelo menos — intimidado. “Pô, não vou saber nem responder essas coisas dele”. Quando ele deixava a gente sem saída, sem resposta, dava uma gargalhada. O Josué Guimarães freqüentou pouco a livraria. Eu não sei dizer por quê. Acho que porque andava viajando, ele era diretor da Agência Nacional lá no Rio de Janeiro. Quando voltou para Porto Alegre, já estava doente.
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