Um escândalo no mundo editorial
Jean-Jacques Pauvert
Tradução de Dorothée de Bruchard
Jean-Jacques Pauvert (França, 1926-2014), editor polêmico e apaixonado que, tendo começado sua carreira durante a 2a guerra como vendedor na livraria Gallimard, tornou-se o bem-sucedido editor de Jean Genet, Georges Bataille, Boris Vian, Salvador Dali e Elie Faure, entre outros. Ficou conhecido sobretudo pela edição ou reedição de obras esquecidas, censuradas ou marginais — foi o primeiro a assumir, a partir de 1947, a edição das obras completas de Sade, até então publicado camufladamente (o que lhe valeu um processo judiciário de mais de dez anos). Em 1954, publicava L'Histoire d'O, de Pauline Réage, e em 1968, a primeira tradução francesa da Desobediência civil de Thoreau.
Escritor, compôs, entre outros, uma Anthologie historique des lectures érotiques em 5 vol. (1979-2001) e Sade vivant, uma biografia de Sade em 3 vol. (1986-1990).
Reproduzimos aqui um excerto de La Traversée du Livre (Paris: Viviane Hamy, 2004), primeiro volume (cobre desde a 2a guerra até maio 1968) de suas Memórias, que afinal não viria a completar.
Em 1965, eu tinha tudo para estar, no fundo, satisfeito com a sorte, apesar da complicação da minha vida pessoal — inerente a um certo tipo de vida. Um mal-estar indefinido, porém, não me deixava. Não, eu não estava assim tão satisfeito com a profissão que exercia, nem com o lugar que ocupava. Sem pensar muito no assunto, achava aquele lugar ostensivo demais, envolvido demais, em suma, com um certo “sucesso” e, na verdade, bem distante das minhas aspirações pessoais. Sentia que me embrenhara num caminho em que seria difícil parar.
Não queria pensar muito no assunto.
Começara então a grande dança das casas editoriais compradas, encampadas, dos reagrupamentos esperados ou inesperados. [...] O pior era que, como sempre, um burburinho de lamentações se erguia entre os profissionais da edição: “Meu Deus, como os livros estão difíceis de vender! O que vai ser de nós? Andam lançando livros demais, demais. O público está se cansando. É a crise.” E cada qual jogava para os colegas a responsabilidade por aquele estado de coisas.
No início do mês de agosto de 1965 — fazia um verão muito bonito —, flanando no boulevard Saint-Germain topei com Pierre Démeron, redator-chefe do Nouveau Candide, um semanário publicado pela Hachette. Eu tinha boas relações com Pierre Démeron. — Tudo bem? — Tudo bem. — Bem nada, diz ele, não tem acontecido nada no mundo literário, o que é que eu vou pôr nos próximos números?
Fiquei mordido: — É claro que você não pode mesmo falar no que está acontecendo no mundo editorial. — E o que é que está acontecendo?, ele perguntou, preocupado. — Está acontecendo que os editores estão doentes. E solto algumas das minhas queixas. Ele ouve interessado: — Você não poderia falar sobre isso abertamente? — Você é que não poderia imprimir. — Quer apostar?, diz ele. E marcamos de almoçar no dia seguinte. Ele trouxe um gravador. Eu estava com um bocado de coisas entaladas, fui desabafando tudo.
Como contar sucintamente um escândalo que sacudiu o mundinho parisiense durante um bom tempo? Foram quatro números do Nouveau Candide, quatro semanas seguidas, bem no início do ano letivo, pouco antes de Frankfurt. Vou citar alguns trechos, pois afinal isso faz parte da minha história. E será que não continua atual, quase quarenta anos mais tarde?
Anunciadas na capa, duas páginas inteiras na seção LETRAS tinham por título:
Às vésperas do início do ano literário, uma entrevista com Jean-Jacques Pauvert: A DOENÇA DOS EDITORES. [...] “Eles dizem que os livros não vendem, mas publicam qualquer coisa”. [...] Pierre Démeron perguntou a Jean-Jacques Pauvert — um dos poucos sobreviventes dentre os editores surgidos no final da guerra, e também um dos mais jovens e mais dinâmicos — o que pensar sobre essa decantada “crise editorial”. Sua resposta irá decerto surpreender e escandalizar muitos dos nossos colegas.
Os editores têm feito declarações extraordinárias: “É, é terrível, a gente não tinha percebido, há uma crise editorial, 98% dos franceses só compram um livro de vez em quando. As bibliotecas públicas não são freqüentadas, o nível cultural dos franceses anda deplorável, etc.”
Pois eu acho que a situação geral da edição nunca esteve tão próspera. Vocês conhecem outra profissão com tão pouca concorrência, tão poucos recém-chegados prontos a dar uma reviravolta no mercado e pôr tudo de cabeça para baixo? [...] Quem está se lamentando é gente que dobrou ou triplicou o faturamento em três anos, na maior tranqüilidade, sem temer a concorrência de um recém-chegado!... [...]
Não, não é a edição que está doente, são os editores. Os livros nunca se venderam tão bem, e se venderiam duas vezes mais se não se publicasse qualquer coisa. Para um editor livreiro, ou seja, um editor que procura descobrir manuscritos, autores novos, existem duas políticas:
A primeira, a dos Gallimard, dos Julliard, dos Seuil, é pensar: “Quanto mais livros publicarmos, mais chance teremos de ganhar o prêmio Goncourt, o Femina, ou de descobrir uma nova Françoise Sagan.” Um editor que aplica esta política e publicou em um ano, digamos, vinte romances, não pode, no ano seguinte, publicar menos que isso, quer a colheita tenha sido boa, quer não, sob pena de ver diminuir seu faturamento. É uma demência, ele é obrigado a praticar uma política de massa, de probabilidades. É claro que, de tempos em tempos, em meio à massa aparece um Le Clézio. Ora, eu dou os parabéns a um editor que, entre cinqüenta romances medíocres, me oferece um Le Clézio, mas não o admiro. Ele investiu bem o seu dinheiro, é só o que se pode dizer. Um editor que publica apenas três romances, dos quais dois são bons, isso sim é admirável. A Editions de Minuit, por exemplo, esse ano não publicou praticamente nenhum romance...
Dei então alguns exemplos de bons livros que se vendem meio pouco: Roussel, Le Bain de Diane, de Klossowski. As pessoas que liam Proust em 1920, que liam Bataille há dez anos, quando ele não era conhecido, que hoje descobrem Klossowski, serão sempre uma ínfima minoria. E prosseguia:
Perguntem aos livreiros, eles dirão o mesmo que eu: estão sobrecarregados. A profissão de livreiro está se tornando impossível. Consiste em abrir pacotes. [...] Um livreiro recebe, em média, trezentas novidades literárias por mês! A crise da edição está bem aí: na prateleira do livreiro, que em vez de se perguntar “Para quem vou vender os meus livros?”, se pergunta “O que vou fazer com todos esses livros insípidos que não interessam ninguém?”.
Se existe crise, não é uma crise de vendas, é uma crise de superprodução. Se publicarmos duas vezes menos livros, venderemos duas vezes mais.
Na semana seguinte, nova manchete de duas páginas: “Os que confundem edição com indústria”, com destaque para uma declaração minha: O trabalho de editor, a meur ver, consiste em recusar.
A principal chaga da edição francesa é que ela é hoje cada vez mais, pelos editores e os financistas que os sustentam, concebida em termos industriais. Ouve-se frequentemente os editores falando em produção: “Produzimos tantos volumes este ano”. “Não estão comprando nossa produção, que está aumentando em 20%”, “Nossas vendas baixaram em 17%”.
Todo o mundo parece ter esquecido que na origem de um livro está a massa cinzenta do autor, e que na ponta da cadeia produtiva está a massa cinzenta do leitor. E os editores estão sendo vítimas desse vocabulário empresarial em que confinaram a edição, que leva um editor que tem 500 milhões de faturamento a não poder se permitir faturar 450 milhões no ano que vem porque isso significaria a ruína. Eles definem seu orçamento pelos moldes de um orçamento da indústria, fundado, de forma bastante infantil, na ilusão de que descobrem todo ano um número x de bons autores.
E o outro problema é que não existem mais autores. Você pode alegar que manuscritos se empilhando sobre as mesas dos editores nunca foram tantos assim. O fato é que manuscritos não faltam, mas pergunte aos leitores das principais editoras, eles dirão o mesmo que eu: a qualidade dos manuscritos não pára de cair.
Por que misterioso motivo passam-se às vezes vários anos em que só aparecem um ou dois bons manuscritos, enquanto que num belo ano, de repente, aparecem quatro ou cinco? Quem saberia dizer? É justamente porque a edição obedece a leis que não têm nada a ver com as leis da indústria, com estatísticas, com previsões. Trata-se antes de uma produção do tipo “agrícola”. Um ano cai granizo e temos menos vinho, no outro cai muito chuva e o vinho fica ruim, no outro há sol, e pouco vinho, mas esse vinho é excelente. Nada disso impede, evidentemente, os fabricantes de vinho de mesa comum, que são obrigados a produzir tantas garrafas, de comprarem vinho na Argélia e assim manterem sua produção. Em se tratando de livros, os fabricantes são esses editores que eu mencionava, os que se sentem forçados a publicar tantos livros de um ano para outro, qualquer que seja a qualidade dos manuscritos que recebem.
A edição francesa está padecendo de falta de autores? Também está padecendo de falta de editores. Pois os editores parecem não perceber que os manuscritos que chegam a eles são ruins, ou então eles sabem mas não dizem, e tudo acontece como se não percebessem. O que está havendo, a meu ver, é uma demissão do editor. Dos autores de vinte anos que recebemos — ou seja, maus escritores, pois ninguém é Rimbaud — 90% não tem a menor idéia do que seja literatura, do que seja escrever, nem nunca terá. Eles não querem trabalhar. O que eles querem é ser publicados. Por que trabalhariam, aliás, se sempre encontram um editor para assinar com eles um contrato por cinco livros?
Você tem assim, de um lado, autores que não precisam trabalhar muito e, do outro, editores que estão prontos a publicar qualquer manuscrito, na esperança falaciosa de ter, daqui a um, dez anos, e de uma vez por todas, um bom autor.
© tradução | Dorothée de Bruchard | 2005.
Tradução gentilmente autorizada pela editora para este site.
Imagens: Escritório do Livro.