Da tradução
Geraldo Holanda Cavalcanti
Excerto de Memórias de um tradutor de poesia
(Florianópolis: Escritório do Livro / NUT/UFSC, 2004).
Meu currículo é simples. Cabe em três palavras: diplomata, poeta, tradutor. E quando me dei conta disso, ao começar a escrever este texto, choquei-me ao constatar que essas três atividades estão marcadas por estigmas que o lugar-comum não cessa de renovar. Sir Henry Wotton, Embaixador da corte de Saint James no século XVIII, escreveu num álbum de uma dama da corte que o Embaixador era um homem honesto enviado ao exterior para mentir pelo seu país. O grande Fernando Pessoa disse que o poeta era um “fingidor que finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. E do tradutor, pobre tradutor, já não mais se consegue achar graça em ouvir dizer que não passa de um traidor. Burlador, fingidor, traidor. Eis o que vi sobrar da reputação de quem acreditou que a diplomacia, a poesia e a tradução eram as mais elevadas atividades a que podia esperar um cidadão honesto.
Mas isso seria ceder lugar a uma visão vulgar, ignorante e apressada da realidade. Vilipendiada como seja por deformadas impressões que não se pejam de repetir chavões desautorizados pela prática já secular e cotidiana, a diplomacia continua a ser o esteio da paz, a ultima ratio antes da catástrofe, e, no mundo globalizado de hoje, mais do que nunca a diplomacia, e sobretudo a diplomacia multilateral, torna-se indispensável para a construção do entendimento entre as nações. E entendimento o que é, senão a capacidade de comunicação, de esclarecimento recíproco, de convencimento mútuo das vantagens da cooperação sobre as da competição, do convívio sobre a rivalidade. E através de que mecanismo é possível favorecer esse entendimento senão pela palavra? Não é à toa que os organismos e instituições internacionais despendem parcelas consideráveis de seus orçamentos com o trabalho dos intérpretes e dos tradutores. É inimaginável a massa de documentos diariamente traduzidos em organismos como as Nações Unidas, a União Européia, a unesco e a miríade de organizações dedicadas à cooperação internacional, nas quais as despesas com traduções são a maior parcela de seus gastos globais. Eis aí um domínio onde a tradução é o eixo central de todo o mecanismo de transmissão das idéias.
A diplomacia multilateral é apenas uma das esferas em que se processa a comunicação global através da palavra. Que falar da mídia escrita e falada, dos jornais, das revistas, dos noticiários televisivos, do cinema, onde centenas de milhares de pessoas estão envolvidas a todos os minutos do dia, em todos os lugares do globo, na tarefa da tradução? E do que se passa nas esferas financeiras, industriais e comerciais, nas áreas de serviços de toda ordem, nas organizações comunitárias sociais, nas relações interpessoais mesmo, onde nada é possível em escala planetária senão através da tradução? Que dizer dos tradutores dos documentos jurídicos essenciais aos contatos internacionais, ao comércio, dos manuais de serviço, das instruções de uso, das bulas, de tudo o que regula a circulação de bens e pessoas?
Isso não obstante, nenhuma atividade, nenhuma profissão é mais ignorada, eu diria mesmo desprestigiada, do que a do tradutor, daquele que torna tudo isso possível. E estamos falando aqui, quando nos referimos a estas últimas categorias de profissionais, apenas da tradução no seu nível mais elementar que é o da tradução utilitária no plano prioritariamente material. Nesse plano a relação exigida entre a palavra original e a traduzida é unívoca, não pode correr o risco de qualquer ambigüidade.
Mas a civilização é, mais que tudo, uma construção cultural e não basta ao entendimento entre os povos, à construção da convivência pacífica e à elevação do homem a satisfação de suas necessidades elementares no plano material. O homem é um ser cultural e é no domínio de seu aperfeiçoamento intelectual, eu diria mesmo espiritual, que encontrará a chave de sua maior satisfação existencial. Nesse processo, é a fecundação recíproca das culturas, através da circulação das idéias, que permitirá a construção de um humanismo global capaz de apoiar o progresso sustentado pela paz.
Penetramos, então, no mundo das idéias, cuja difusão vai representar um segundo nível no trabalho da tradução. Na verdade, são tão complexas as exigências da tradução nesse nível que quase se pode falar de uma diferença qualitativa com relação ao nível da tradução utilitária.
Com efeito, vamos encontrar nessa esfera um desdobramento da atividade intelectual do tradutor de suma importância. Ele será agora, por assim dizer, intérprete e tradutor. Na translação da obra do pensador, do filósofo, do antropólogo, do crítico social, do ideólogo, enfim, da obra de quem quer que expresse conceitos, e não descreva, simplesmente, fatos ou objetos materiais, tem o tradutor que, primeiro, penetrar no íntimo do pensamento do autor que traduz, entender-lhe a linguagem com clareza, os símbolos, as construções semânticas, as intenções, sob pena de não alcançar transferir o conhecimento contido na obra original. Essa exigência é estrita e não admite indulgências. [...]
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