Excertos de

Walter Benjamin

sobre colecionismo e bibliofilia

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O Colecionador

“Der Sammler", Das Passagen-Werk. In: Gesammelte Schriften, v. 1, org. por Rolf Tiedemann. Frankfurt: Suhrkamp, 1982, p. 269-280. | TEXTO ORIGINAL |


Christian Ludwig Bokelmann. Der Kunstkenner, 1879.

Talvez o motivo mais recôndito do colecionador possa ser circunscrito da seguinte forma: ele empreende a luta contra a dispersão. O grande colecionador é tocado bem na origem pela confusão, pela dispersão em que se encontram as coisas no mundo. Foi o mesmo espetáculo que ocupou tanto os homens da era barroca; em especial, não se pode explicar a imagem de mundo do alegorista sem o envolvimento passional provocado por esse espetáculo. O alegorista é por assim dizer o pólo oposto ao colecionador. Ele desistiu de elucidar as coisas através da pesquisa do que lhes é afim e do que lhes é próprio. Ele as desliga de seu contexto e desde o princípio confia na sua meditação para elucidar seu significado. O colecionador, ao contrário, reúne as coisas que são afins; consegue, deste modo, informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessão no tempo. No entanto — e isto é mais importante que todas as diferenças que possa haver entre eles —, em cada colecionador esconde-se um alegorista e em cada alegorista, um colecionador. No que se refere ao colecionador, sua coleção nunca está completa; e se lhe falta uma única peça, tudo que colecionou não passará de uma obra fragmentária, tal como são as coisas desde o princípio para a alegoria. Por outro lado, justamente o alegorista, para quem as coisas representam apenas verbetes de um dicionário secreto, que revelará seus significados ao iniciado, nunca terá acumulado coisas suficientes, sendo que uma delas pode tanto menos substituir a outra que nenhuma reflexão permite prever o significado que a meditação pode reivindicar para cada uma delas. [H 4a, 1]

Anita Malfatti (1889-1964). Objetos orientais, s/d.

É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas funções primitivas, a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Esta relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular da completude. O que é esta “completude” [?] É uma grandiosa tentativa de superar o caráter totalmente irracional de sua mera existência através da integração em um sistema histórico novo, criado especialmente para este fim: a coleção. E para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopédia de toda a ciência da época, da paisagem, da indústria, do proprietário do qual provém. O mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa particular em um círculo mágico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre um último estremecimento (o estremecimento de ser adquirida). Tudo o que é lembrado, pensado, consciente torna-se suporte, pedestal, moldura, fecho de sua posse. Não se deve pensar que o tópos hyperouranios, que, segundo Platão, abriga as imagens primevas e imutáveis das coisas, seja estranho para o colecionador. Ele se perde, certamente. Mas possui a força de erguer-se novamente apoiando-se em uma tábua de salvação, e a peça recém-adquirida emerge como uma ilha no mar de névoas que envolve seus sentidos. — Colecionar é uma forma de recordação prática e de todas as manifestações profanas da “proximidade”, a mais resumida. Portanto, o ato mais diminuto de reflexão política faz, de certa maneira, época no comércio antiquário. Construímos aqui um despertador, que sacode o kitsch do século anterior, chamando-o à “reunião”. [H 1a, 2]

Walter Gay. Chez Helleu, 1902.

É importante o lado fisiológico do ato de colecionar. Não deixar de ver, ao analisar este comportamento, que o ato de colecionar adquire uma evidente função biológica na construção dos ninhos pelos pássaros. Parece haver uma alusão a isso no Trattato sull'Architectura, de Vasari. Pavlov também teria se interessado por colecões. [H 4, 1]

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Colecionar é um fenômeno primevo do estudo: o estudante coleciona saber. [H 4, 2]

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Possuir e ter estão relacionados ao caráter tátil e se opõem em certa medida à percepção visual. Colecionadores são pessoas com instinto tátil. A propósito, com o abandono do naturalismo terminou recentemente a primazia do óptico que dominou o século anterior. [H 2, 5]

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O verdadeiro método de tornar as coisas presentes é representá-las em nosso espaço (e não nos representar no espaço delas). (Assim procede o colecionador e também a anedota.) As coisas, assim representadas, não admitem uma construção mediadora a partir de “grandes contextos”. Também a contemplação de grandes coisas do passado — a catedral de Chartres, o templo de Paestum — (caso ela seja bem-sucedida) consiste, na verdade, em acolhê-las em nosso espaço. Não somos nós que nos transportamos para dentro delas, elas é que adentram a nossa vida. [H 2, 3]

Charles Verlat. Le Collectionneur, 1880.

Uma apologia do colecionador não deveria passar ao largo destas invectivas: “A avareza e a velhice, observa Gui Patin, andam sempre juntas. A necessidade de acumular é dos sinais precursores da morte, tanto nos indivíduos quanto nas sociedades. Ela surge em seu estado agudo nos períodos pré-paralíticos. Há também a mania da coleção, em neurologia o colecionismo’. / Desde a coleção de grampos de cabelo até a caixa em papelão trazendo a inscrição: Pequenos pedaços de barbante não servindo para nada.” Les 7 Péchés Capitaux, Paris, 1929, pp. 26-27 (Paul Morand, “L’avarice”). Cf, no entanto, a arte de colecionar das crianças! [H 2a, 3]

Domenico Remps. Scarabatollo (detalhe), c. 1690.

Pode-se partir do fato de que o verdadeiro colecionador retira o objeto de suas relações funcionais. Esse olhar, porém, não explica a fundo esse comportamento singular. Pois não é esta a base sobre a qual se constrói uma contemplação “desinteressada” no sentido de Kant e de Schopenhauer, de tal modo que o colecionador consegue lançar um olhar incomparável sobre o objeto, um olhar que vê mais e enxerga diferentes coisas do que o olhar do proprietário profano, e o qual deveria ser melhor comparado ao olhar de um grande fisiognomonista. Entretanto, o modo como este olhar se depara com o objeto deve ser presentificado de maneira ainda mais aguda através de uma outra consideração. Pois é preciso saber: para o colecionador, o mundo está presente em cada um de seus objetos e, ademais, de modo organizado. Organizado, porém, segundo um arranjo surpreendente, incompreensível para uma mente profana. Este arranjo está para o ordenamento e a esquematização comum das coisas mais ou menos como a ordem num dicionário está para uma ordem natural. Basta que nos lembremos quão importante é para cada colecionador não só o seu objeto, mas também todo o passado deste, tanto aquele que faz parte de sua gênese e qualificação objetiva, quanto os detalhes de sua história aparentemente exterior: proprietários anteriores, preço de aquisição, valor etc. Tudo isso, os dados “objetivos”, assim como os outros, forma para o autêntico colecionador em relação a cada uma de suas possessões uma completa enciclopédia mágica, uma ordem do mundo, cujo esboço é o destino de seu objeto. Aqui, portanto, neste âmbito estreito, é possível compreender como os grandes fisiognomonistas (e colecionadores são fisiognomonistas do mundo das coisas) tornam-se intérpretes do destino. Basta que acompanhemos um colecionador que manuseia os objetos de sua vitrine. Mal segura-os nas mãos, parece estar inspirado por eles, parece olhar através deles para o longe, como um mago. (Seria interessante estudar o colecionador de livros como o único que não necessariamente desvinculou seus tesouros de seu contexto funcional.) [H 2, 7;  H 2a, 1]

“O colecionador”. In Passagens. Trad. de Cleonice Paes Barreto Mourão e Irene Aron.
Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial, 2009, p. 237-246. | VERSÃO DIGITAL |
Imagens: Escritório do Livro

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