Excertos de
Walter Benjamin
sobre colecionismo e bibliofilia
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Eduard Fuchs, colecionador e historiador
Eduard Fuchs, der Sammler und der Historiker. Ensaio publicado em 1937 na revista Zeitschrift für Sozialforschung, vol. 6, n. 2, p. 346-381. | TEXTO ORIGINAL |
Há muitos tipos de colecionadores, e em cada um deles atua um feixe de impulsos. Enquanto colecionador, Fuchs foi sobretudo um pioneiro: fundador de um arquivo, único da sua espécie, que documenta a história da caricatura, da arte erótica e dos quadros de costumes.
A figura do colecionador, que se torna tanto mais atraente quanto mais tempo nos ocupamos dela, não foi até agora suficientemente valorizada. Pensar-se-ia que ninguém, mais do que ela, deveria ter tentado os contadores de histórias românticos. Mas é em vão que procuramos esse tipo humano movido por paixões perigosas, apesar de domesticadas, entre as figuras de um Hoffmann, de um De Quincey, de um Nerval. Românticas são as figuras do viajante, do flâneur, do jogador, do virtuoso. A do colecionador não faz parte dessa galeria. E procuramo-la em vão entre as “fisiologias”, às quais não escapou nenhuma figura do panóptico parisiense no reinado de Louis Philippe, do vendedor de rua aos reis dos salões. Mais significativo é o papel atribuído ao colecionador em Balzac, que lhe erigiu um monumento sem de modo algum lhe dar um tratamento romântico. Trata-se de um autor desde logo alheio ao Romantismo. E poucas entre as suas obras revelam uma posição tão surpreendentemente antirromântica como o esboço d’O Primo Pons. O mais significativo é talvez o seguinte: se, por um lado, ficamos sabendo tudo sobre as peças da coleção a que Pons dedicou a sua vida, por outro não sabemos quase nada da história da sua aquisição. Não há nessa obra nenhuma página comparável àquelas em que os Goncourt descrevem nos seus diários, com empolgante suspense, a aquisição de um achado raro. Balzac não apresenta o caçador, imagem que serve a todo colecionador. A sensação máxima que faz vibrar todas as fibras do seu Pons e do seu Elie Magus é o orgulho — orgulho dos tesouros incomparáveis que guardam com incansável cuidado. Balzac coloca toda a ênfase na representação do “proprietário”, e escapa-lhe a palavra “milionário” como sinônimo de “colecionador”. Fala de Paris, e escreve: “Aí podemos muitas vezes encontrar um Pons, um Elie Magus, miseravelmente vestidos. Parece que não dão valor a nada, que não querem saber de nada, não dão atenção nem às mulheres nem às montras. Andam pelas ruas como em sonhos, de bolsos vazios, olhar perdido, e perguntamo-nos que espécie de parisienses são esses. São milionários. Colecionadores, os homens mais apaixonados do mundo”.
A imagem do colecionador em Balzac aproxima-se mais da de Fuchs, da sua atividade múltipla, do que a que pudéssemos fazer de um romântico. Pode mesmo se dizer, tocando no nervo vital desse homem: Fuchs, o colecionador, é tipicamente balzaquiano, é uma figura de Balzac que ultrapassou o seu próprio criador. Quem melhor poderia documentar essa concepção do que um colecionador cujo orgulho, cuja força expansiva, desejoso de se mostrar a toda gente com as suas coleções, o levam a apresentá-las ao mercado em reproduções, para, desse modo — outro traço não menos balzaquiano —, se tornar um homem rico? Não é apenas o escrúpulo de um homem que sabe que é um conservador de tesouros, é também o exibicionismo do grande colecionador aquilo que leva Fuchs a incluir em todas as suas obras exclusivamente material iconográfico inédito, e quase sempre das suas próprias coleções. Só para o primeiro volume d’A Caricatura dos Povos Europeus colecionou nada mais nada menos que 68.000 desenhos, para escolher cerca de quinhentos. Nenhum desses desenhos foi reproduzido mais do que uma única vez. A riqueza da sua documentação e o espectro amplo da sua difuão são indissociáveis.
Daumier foi o mais feliz objeto de investigação para Fuchs. E igualmente a mais feliz das suas iniciativas. É com justificado orgulho que Fuchs lembra que não foi graças à iniciativa estatal, mas à sua própria, que pela primeira vez alguém conseguiu reunir os primeiros álbuns de Daumier (e de Gavarni) na Alemanha. E não está só entre os grandes colecionadores na sua desconfiança em relação aos museus. Os Goncourt anteciparam-se-lhe nisso, e ultrapassam-no em violência. Se, por um lado, as coleções públicas poderiam ser socialmente menos problemáticas e cientificamente mais úteis do que as privadas, por outro desperdiçam a maior oportunida destas. O colecionador dispõe, na sua paixão, de uma varinha de vedor que o transforma em descobridor de novas fontes. Isso se aplica a Fuchs, e por essa razão ele tinha de se opor ao espírito que dominava os museus sob a égide de Guilherme II, e que só se interessava pelas chamadas peças representativas. “É um fato”, diz Fuchs, “que esse tipo de coleção está hoje condicionado pelas disponibilidades de espaço dos museus. Mas esse condicionalismo em nada altera o fato de que, por essa via, obtemos uma ideia muito incompleta da cultura do passado. Só a vemos nos trajes faustosos dos dias de festa, mas raramente nos seus mais modestos fatos de trabalho.”
Os grandes colecionadores distinguem-se quase sempre pela originalidade da sua escolha dos objetos. Mas há exceções: os | GONCOURT | partiam menos dos objetos do que dos contextos que os escondiam, e realizaram a transfiguração do interior burguês quando ele acabava de desaparecer. Em regra, porém, os colecionadores deixaram-se guiar pelos próprios objetos. Um grande exemplo, no limiar da Idade Moderna, é o dos humanistas, cujas aquisições de objetos gregos e viagens à Grécia dão testemunho da forma consequente como orientavam as suas coleções. Com [Michel de] | MAROLLES |, modelo de Démocède, o colecionador entra na literatura pela mão de La Bruyère (e logo com uma | imagem pouco lisonjeira |). Marolles foi o primeiro a reconhecer a importância da gravura, e a sua coleção de 125.000 estampas constitui o núcleo fundador do Cabinet des Estampes. O catálogo em sete volumes das suas coleções, organizado no século seguinte pelo conde de Caylus, é o primeiro grande trabalho desse tipo de arqueologia. A coleção de gemas de Stosch foi catalogada por Winckelmann, por incumbência do colecionador. Mesmo nos casos em que não estava destinada grande duração à concepção científica subjacente a tais coleções, em certos casos as próprias coleções revelaram tê-la. Foi o que aconteceu com a de | WALLRAF e BOISSERÉE |, cujos fundadores, apoiando-se na teoria romântico-nazarena de que a arte de Colônia era herdeira da arte antiga romana, criaram com as suas pinturas da Idade Média alemã o fundo essencial do museu de Colônia. Fuchs insere-se nessa série de grandes colecionadores que planificavam as suas coleções e se dedicaram a uma causa sem se desviarem do seu caminho. A sua ideia condutora é a de restituir à obra de arte a existência na sociedade, da qual havia sido de tal modo segregada que o lugar onde ele a foi encontrar era o de um mercado em que ela, igualmente afastada dos seus produtores e daqueles que a poderiam compreender, sobrevivia reduzida à sua condição de mercadoria. [...]
A caricatura era uma arte de massas, tal como o quadro de costumes. Esse caráter, na sua qualidade difamatória, juntava-se, para a história da arte corrente, a outros vistos como problemáticos e condenáveis. Não é assim para Fuchs: a sua força reside precisamente no olhar que lança aos objetos desprezados e apócrifos. E o caminho para lá chegar, de que o marxismo mal lhe tinha indicado o começo, abriu-o ele por si próprio, como colecionador, com uma paixão a raiar os limites do maníaco. Foi ela que marcou os traços essenciais de Fuchs: em que sentido podemos percebê-los e seguirmos, nas litografias de Daumier, a longa série de amigos da arte e comerciantes, dos admiradores da pintura e dos conhecedores da escultura. São todos parecidos com Fuchs, até na constituição física. São figuras altas e magras, e os olhares saem deles como línguas de fogo. Não foi por acaso que alguém disse que Daumier representa nelas os continuadores daqueles alquimistas, necromantes e agiotas que encontramos nos quadros dos mestres antigos. Enquanto colecionador, Fuchs pertence a essa linhagem. E do mesmo modo que o alquimista associa ao seu desejo “inferior” de produzir ouro a investigação das substâncias químicas em que os planetas e os elementos se juntam para formar imagens espirituais do homem, assim também esse colecionador juntou ao desejo “inferior” da posse a investigação de uma arte em cujas criações convergem as forças produtivas e as massas para formar imagens do homem na história. Até os últimos livros, é possível detectar o empenho apaixonado com que Fuchs perseguiu essas imagens.
Tradução de João Barrento.
“Eduard Fuchs, colecionador e historiador”. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 123-164.
Imagens: Escritório do Livro
NOTAS
Dorothée de Bruchard
Os irmãos Goncourt
Hoje mais conhecidos pela Academia literária e o prêmio que levam seu nome, os irmãos Edmond (1822-1896) e Jules (1830-1870) de Goncourt, influentes figuras da cena cultural francesa de seu tempo, foram romancistas, críticos literários, polêmicos cronistas e também grandes colecionadores de arte — notadamente de objetos e gravuras japonesas.
Embora algumas de suas aquisições se achem eventualmente registradas em seu Diário, publicado postumamente, em | LA MAISON D’UN ARTISTE | (1881) é que Edmond descreve minuciosamente, em dois volumes, a coleção que transformou em obra de arte a própria casa dos irmãos, nos arredores de Paris, pelo cuidado com que ambos (e Edmond sozinho, após a morte prematura de Jules) planejavam a disposição de cada objeto em harmonia com o todo. “Se eu já não fosse um literato […], diz ele, meu ofício seria criador de interiores para ricos.” (v. 1, p. 25)
A coleção foi vendida em 1897, e a renda angariada, revertida para a fundação da Académie Goncourt. Cumpria-se assim o desejo de Edmond, expresso em seu | TESTAMENTO |: “Minha vontade é que meus desenhos, estampas, bibelôs, meus livros, todos os objetos de arte, enfim, que foram a alegria da minha vida, não ganhem o túmulo frio de um museu nem o olhar parvo de um passante indiferente. Peço que sejam todos dispersados pelo martelo do leiloeiro, e que o prazer que me trouxe a aquisição de cada um deles seja revivido por algum herdeiro do meu gosto.” (© trad. Dorothée de Bruchard, 2019.)
Michel de Marolles (1600 - 1681)
Ensaísta, historiador, tradutor e colecionador de arte, o abade Marolles ficou conhecido por seu prodigioso acervo de estampas que, adquirido pelo Estado em 1668, constituiu o núcleo inicial do Cabinet des estampes da atual Bibliothèque nationale de France, além de ter publicado, em 1666, o primeiro livro já produzido sobre coleção de estampas, com 123.400 mil gravuras, de mais de seis mil artistas, minuciosamente descritas e catalogadas. À direita: Claude Mellan. Michel de Marolles, 1648.
Marolles é frequentemente associado à fictícia figura de Démocède mostrada pelo ensaísta e moralista JEAN DE LA BRUYÈRE (1645-1696) em seus Caractères ou les Mœurs de ce siècle (1688) :
« A curiosidade não é o gosto por aquilo que é bom ou belo, mas pelo que é raro, único, pelo que temos e os outros não têm. Não é um apreço pelo que é perfeito, mas pelo que é concorrido, pelo que está na moda. Não é um divertimento, é uma paixão, e não raro tão violenta que só perde para o amor e para a ambição pela pequenez do seu objeto. [...]
‘Quer ver minhas estampas?’, acrescenta Démocède, e logo as espalha para lhe mostrar. Você repara numa que não é preta, nem nítida, nem bem desenhada, aliás menos própria de se guardar num gabinete do que para cobrir, em dias de festa, a Petit Pont ou a rue Neuve. Ele admite que foi mal gravada, e mais mal desenhada ainda; mas afirma que é de um italiano que produziu pouco, que teve pequeníssima tiragem, que é a única desse desenho existente na França, que pagou muito caro por ela e não a trocaria pela melhor das que possui. E prossegue: ‘Tenho uma profunda mágoa, que vai me obrigar a renunciar às estampas pelo resto da minha vida: tenho todas de Caillot, exceto uma, que não é, na verdade, das suas melhores, pelo contrário, é das piores, mas com ela eu completaria a coleção. Há vinte anos que procuro por essa estampa, e já estou perdendo a esperança de consegui-la, é muito triste!’ » (Capítulo “Sobre a moda”) · | TEXTO ORIGINAL |
© Trad. Dorothée de Bruchard, 2019
À esquerda: Rosto do Catálogo de Marolles. Paris: BnF.
| EDIÇÃO FAC-SIMILAR |
Ferdinand Franz Wallraf (1748 – 1824)
Botânico, matemático, teólogo e sacerdote, iniciou sua coleção no momento em que Colônia, ocupada pelas tropas revolucionárias, se tornava uma comuna francesa (1798). Então professor de letras e artes da Zentralschule, empenhou-se em resgatar obras de arte sujeitas a danos e descaso pela estatização (senão destruição) de igrejas e prédios públicos pelo regime republicano. Passou a reunir obsessivamente tudo que se relacionasse à história de Colônia — pinturas medievais, objetos de arte sacra, manuscritos, gravuras, moedas, fósseis, além de armas e esculturas. Legou sua imensa coleção à cidade de Colônia, com a condição de que ali permanecesse para sempre e acessível a todos em benefício das artes e ciências. Inicialmente exposta no edifício Wallrafianum, acabou por dar origem a diferentes museus pelos quais se acha hoje distribuída, com ênfase no Wallraf-Richartz. Sua biblioteca, de cerca de 14 mil volumes, integra o acervo da Biblioteca da Universidade de Colônia.
Os irmãos Boisserée
Temendo a perda ou destruição dos objetos de arte pertencentes às igrejas face à sanha revolucionária francesa, mas também por motivação comercial, é que Sulpiz (1783-1854) e Melchior (1786-1851) Boisserée davam início, em 1804, à sua coleção de pinturas primitivas alemãs e flamengas. Enquanto Melchior tratava das aquisições, Sulpiz, historiador da arte e da arquitetura, discípulo e amigo de Schlegel, dedicava-se ao estudo e pesquisa, chegando a desenvolver uma teoria sobre a história da pintura alemã. Num momento em que, na esteira do Romantismo, crescia entre os alemães a consciência de sua cultura nacional, a coleção celebrizou-se rapidamente — o palácio Boisserée em Heidelberg onde os irmãos a expuseram publicamente a partir de 1910, tornou-se ponto de peregrinação de estudiosos, artistas e soberanos. Em 1827, somava 216 pinturas quando foi adquirida, por uma quantia fabulosa, pelo rei e também colecionador Ludwig I da Baviera, sendo a seguir instalada, em 1836, na recém-inaugurada Alte Pinakothek de Munique.
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