Excertos de

Walter Benjamin

sobre colecionismo e bibliofilia

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Desempacotando a minha biblioteca

Ich packe meine Bibliothek aus. Eine Rede über das Sammeln (1931). | TEXTO ORIGINAL |


Carl Spitzweg. Der Bücherwurm, 1850.

Estou a desempacotar a minha biblioteca. É verdade, os livros ainda não estão nas prateleiras, não os envolve ainda o tédio silencioso da ordem. [...]

Toda paixão está próxima do caos, mas a de coleccionar confina com o das recordações. Mas direi mais ainda: o acaso, o destino, que tingem o passado diante dos meus olhos, estão também presentes na desordem familiar destes livros. De facto, o que é esta colecção senão uma desordem na qual o hábito se instalou de tal modo que ela pode apresentar-se como ordem? Já ouviram falar de pessoas que adoecem pela perda dos seus livros, e de outras que para os adquirir se tornam criminosos. Nestes domínios, toda a ordem mais não é do que um estado periclitante à beira de um abismo. “O único conhecimento exacto que existe”, disse Anatole France, “é o do ano de publicação e do formato dos livros.” De facto, se existe um contraponto para a desordem de uma biblioteca, é o da ordem do seu inventário.

Assim, a existência do coleccionador assenta numa tensão dialéctica entre os pólos da desordem e da ordem. [...]

Para ele, não são os livros, mas os exemplares, que têm um destino. E para ele, o mais relevante destino de um exemplar é o seu encontro com ele, com o coleccionador e a sua colecção. Não exagero quando digo que para um coleccionador a aquisição de um livro antigo significa o seu renascimento. É nisso que consiste o lado infantil que no coleccionador se encontra com o senil. As crianças têm a capacidade de renovar a existência graças a uma prática múltipla e nunca complicada. Nelas, nas crianças, o coleccionar é apenas um processo de renovação; outros são o de pintar os objectos, de recortar, de decalcar, e toda a escala dos modos de apropriação das crianças, do tocar até ao nomear. Renovar o mundo velho — é este o impulso mais enraizado na vontade do coleccionador de adquirir peças novas, e por isso o coleccionador de livros antigos está mais perto da fonte do coleccionar do que os que se interessam por reimpressões bibliófilas. [...]

Carl Spitzweg. Der Antiquar, 1847.

Quantas coisas não voltam à memória quando nos aventuramos na montanha de caixas, para retirar dela os livros no nosso trabalho diurno, ou melhor, nocturno. Nada torna mais evidente o fascínio de desempacotar do que a dificuldade de dar por terminada a tarefa. Tinha começado ao meio-dia, e já era meia-noite quando decidi atirar-me às duas últimas caixas. Mas nesta ponta final caíram-me nas mãos dois volumes cartonados, já desbotados, que, em rigor, não deviam estar numa caixa com livros: dois álbuns com vinhetas que a minha mãe tinha colado em criança, e que eu herdei. São as sementes de uma colecção de livros infantis que continua a crescer, ainda que já não no meu jardim. [...] Uma herança é a maneira mais segura de formar uma colecção. A atitude do coleccionador em relação às peças que possui vem do sentimento de responsabilidade do dono para com os objectos que possui. É, pois, no sentido mais elevado, a atitude do herdeiro. O título de glória de uma colecção será sempre o da sua hereditariedade. Ao dizer isto, tenho plena consciência — e é bom que o saibam — de que a revelação que vim fazendo do mundo mental implícito no acto de coleccionar reforçará em muitos de vós a convicção do carácter intempestivo desta paixão e a desconfiança em relação ao tipo humano do coleccionador. Longe de mim querer abalar-vos nas vossas convicções e na vossa desconfiança. Só quero deixar mais uma nota: o fenómeno do coleccionar perde o seu sentido logo que perde o seu sujeito. Se as colecções públicas podem ser vistas como menos chocantes pelo lado social e mais úteis pelo lado científico do que as privadas, o facto é que só nestas os objectos têm a sua razão de ser. De resto, sei que, para o tipo de pessoa de que vos falei e que eu próprio, um pouco ex officio, represento, começou já a cair a noite. Mas, como diz Hegel: a coruja de Minerva só inicia o seu voo ao cair da noite. Só quando se extinguir, o coleccionador será compreendido.

Entretanto, estou diante da última caixa, meio vazia, e já passa muito da meia-noite. Afluem outros pensamentos, diferentes daqueles de que falei. Pensamentos, não: imagens, memórias. Recordações das cidades em que encontrei tanta coisa: Riga, Nápoles, Munique, Danzig, Moscovo, Florença, Basileia, Paris; recordações das sumptuosas salas de Rosenthal em Munique, da Stockturm [Torre dos Brasões] de Danzig, onde vivia o falecido Hans Rhaue, da cave cheia de livros e de mofo de SüBengut, em Berlim Norte; recordações dos quartos onde tinha esses livros, do meu alojamento de estudante em Munique, do meu quarto em Berna, da solidão de Iseltwald no Lago de Brienz, e finalmente o meu quarto de criança, de onde provêm apenas quatro ou cinco dos muitos milhares de livros que começam a avolumar-se à minha volta. Sorte do coleccionador, sorte do particular! Nunca ninguém procurou menos por detrás de alguém, e ninguém se sentiu tão bem nesse papel como aquele que pôde continuar a sua existência desacreditada atrás da máscara de Spitzweg. [Ref. ao pintor Carl Spitzweg (1808-1885), autor de vários quadros tendo por tema o livro e a leitura, entre os quais o famoso Der Bücherwurm ou “rato de biblioteca” (acima).] Na verdade, no seu interior alojaram-se espíritos, pelo menos geniozinhos que levam a que, para o coleccionador — falo do autêntico, do coleccionador como deve ser —, a posse seja a mais profunda forma de relação que se pode ter com as coisas: não por elas estarem vivas nele, mas porque é ele mesmo quem vive nelas.

Tradução de João Barrento.
“Desempacotando a minha biblioteca. Uma palestra sobre o colecionador”. In: Imagens de pensamento. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004, p. 207-14.
| TEXTO INTEGRAL |
Imagens: Escritório do Livro.

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