O livro · Impressão e fabrico
Introdução
Douglas McMurtrie
Tradução de Maria Luísa Saavedra Machado
Douglas McMurtrie (EUA, 1888-1944), foi diretor do Columbia Printing Office, Editor da Ars Tipographica e esteve à frente do American Imprints Inventory. Amante e estudioso do livro, deixou várias obras de peso, entre as quais: American type design (1924), The first printers in Chicago (1927), Jonathan Meeker, pioneer printer of Kansas (1930), The beginnings of printing in Virginia (1935), A history of printing in the United States (1936), Wings for words: the story of the Gutenberg documents (1941), The invention of printing: a bibliography (1942).
Reproduzimos aqui um excerto da sua introdução a O livro - impressão e fabrico,
publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian (3. ed, Lisboa, 1997). A obra original, The Book - the story of printing and bookmaking, foi lançada pela Oxford University Press em 1942. (D.B.) Ao lado, seu logotipo.
É evidente que os livros são uma necessidade primordial da vida em qualquer comunidade civilizada. Mas, enquanto há largo apreço da literatura, isto é, da arte de escrever livros, há, em comparação, pouca estima popular da arte da feitura do livro. Contudo, a sua estruturação é tanto uma arte como a arquitectura, a pintura ou a escultura — e talvez até de maior significação para a população em geral, na medida em que exerce frequentemente influência estética em maior número de pessoas do que qualquer outra arte. A fixação do tipo e a impressão do livro são, na verdade, uma arte susceptível de elevados padrões, como a arte do tecelão, do oleiro e do ourives.
A fabricação do livro actual é lamentavelmente deficiente na estruturação e execução devido à falta de apreço, da parte do público, da excelência da habilidade do artífice posta na elaboração de um livro verdadeiramente belo. Quando se exige um bom trabalho em qualquer campo, tal exigência é inevitavelmente satisfeita. É talvez por causa dessa falta de gosto e interesse que há poucos "livros sobre livros" dirigidos ao leitor comum, e que lhe dêem a conhecer o essencial da sua boa manufactura.
Mas, enquanto a média destes trabalhos tem sido e continua a ser pobre, surgem raios de luz por entre as trevas. Há hoje até um começo de renascimento nas artes do livro, um despertar que necessita e merece o encorajamento de todos os seus amadores. Sendo protegidas, aquelas artes florescerão; a arte do impressor será levada uma vez mais a lugar de dignidade, ao orgulho do bom trabalho.
Por isso, embora deplorando alguns aspectos predominantes no fabrico do livro, a nossa atitude deve ser optimista, pois se antolham condições de melhoria. E aqueles que executam bons livros verificam que eles se vendem, o que demonstra apreço, não só virtual mas também real — embora talvez limitado em extensão.
Pessoalmente, sinto verdadeiro entusiasmo por livros bons — sobretudo pelo seu conteúdo. Mas sinto ainda outro prazer com uma boa obra de literatura interpretada graficamente por um artista, da mesma maneira que muito aprecio uma grande sinfonia tocada por uma grande orquestra sob a regência de um maestro de autêntica inspiração. Transmitir um belo passo ao nosso espírito por um meio que esteticamente nos perturba não pode deixar de dificultar a sua completa apreciação. Revesti-lo de uma forma gráfica simples, apropriada, mas simultaneamente bela, é tratá-lo apenas como merece, e, assim apresentado, não pode deixar de nos dar, subtil e talvez inconscientemente, maior prazer no decorrer de sua leitura.
A ambição do verdadeiro artista no campo da execução do livro é apresentar boas obras de literatura com belo aspecto gráfico. Só ocasionalmente tem esta oportunidade com as reimpressões dos clássicos, mas quase nunca com a melhor literatura moderna. A maior parte destes livros são feitos para se venderem em grandes quantidades e passam pela mesma máquina de impressão, de maneira que nada os distingue da novela mais medíocre que os precede no catálogo do editor. No meu anseio estético pelos livros modernos de que mais gosto, quase parece que os bons livros são, se é possível, um pouco piores do que a média, no que respeita a estruturação e apresentação. Uma olhadela pelas prateleiras de qualquer colecção de primeiras edições modernas demonstrará como os autores actuais têm sido mesquinhamente tratados por impressores que apresentaram os produtos da imaginação deles ao mundo da crítica.
O editor comum, ao ler o parágrafo anterior, responderá imediatamente que há limitações impostas pelo custo da produção e pelos preços da venda dos livros correntes, o que me leva a fazer uma afirmação que nunca é demasiado realçar: A boa estruturação do livro quase não tem relação com a despesa feita com a sua manufactura. O gosto e o juízo crítico são os únicos elementos necessários. Na fabricação do livro, o artista, se é profundo conhecedor do assunto e não um simples amador, pode transformar uma obra de tosco aspecto num belo volume — sem aumento de preço. O modo de o fazer discutir-se-á pormenorizadamente mais tarde. Lembremos, contudo, o seguinte preceito: a boa execução não é necessariamente dispendiosa.
Há um elemento de benefício geral em melhorar a estruturação dos materiais impressos de grande circulação, pois o aperfeiçoamento exerce influência no gosto de inúmeros leitores. O tipógrafo que tem oportunidade de organizar graficamente uma novela popular, a capa duma lista telefónica, os títulos e a composição dum jornal de grandes cidades, pode dar a mesma contribuição para elevar o nível do gosto público, tal como o arquitecto que projecta casas de modestos trabalhadores com verdadeira beleza e encanto. Todos nós nos podemos associar com vontade a esta campanha contra a vulgaridade.
Deve fazer-se ainda outra observação. Bela manufactura não significa estruturação complicada. Alguns dos livros mais bonitos são feitos com tipos simples e apenas com elementos de gosto e juízo crítico na sua colocação, espacejamento e distribuição na página. Embora uma pequena decoração apropriada, usada com discrição, contribua muitas vezes para aumentar o encanto duma obra, ela não é de modo algum essencial para conseguir os melhores resultados na sua estruturação, conforme muitos mestres impressores antigos e modernos têm demonstrado.
Como em outras artes, o melhor, na prática actual, baseia-se na tradição corrente durante séculos, associada, em grau limitado, com princípios de origem moderna, tudo colorido pela interpretação pessoal do desenhador. A melhor arte de impressão de qualquer época não tem sido revolucionária, mas antes evolutiva, arte em que o impressor de génio acrescenta alguma característica nova ao trabalho dos seus predecessores. Por isso, o bom artista estuda cuidadosamente a história da sua arte e familiariza-se com as obras primas impressas, elaboradas desde a invenção dos tipos móveis. Elas terão valor não só para o desenvolvimento do seu próprio gosto, mas também lhe oferecem bons modelos para trabalhar. Mas se a sua obra pretende sair da vulgaridade, ele deve introduzir alguma característica nova que a tornará um original seu e fará dela uma criação e não uma simples reprodução.
Há ainda outra razão para conhecer os aspectos históricos da tipografia, uma vez que determinadas épocas e países têm desenvolvido características específicas e individuais de modelos de tipo e de composição. Quando um tipógrafo, para estruturar graficamente um livro, tem à sua frente o manuscrito de uma obra sobre o Congresso Continental Americano, não irá fazê-lo com um tipo de inteira inspiração italiana que date do século XVI, mas escolherá antes um tipo de acordo com o caráter da nossa tipografia colonial e fará igualmente a portada no mesmo estilo. Porém, quando se trata de um volume constituído por traduções de ensaios franceses do século XVIII, é preferível, não havendo razões em contrário, dar-lhe alguma coisa do sentimento altamente característico da impressão e decoração francesas daquele século.
Qualquer apreciação da esturutração do livro moderno baseia-se, pelo menos, em grau considerável, no conhecimento e compreensão do seu desenvolvimento histórico. Por este motivo, muitos dos capítulos nas primeiras três partes desta obra são históricos, começando com as origens da escrita e do nosso alfabeto, descrevendo, em seguida, num breve esboço, a antiga fabricação do livro, com algumas referências ao trabalho de ilustres impressores, e procurando avaliar a sua contribuição para a arte da estruturação do livro. Os capítulos posteriores são dedicados à discussão das várias características da sua fabricação que entram na organização e apresentação de várias espécies de livros. No capítulo final, que é breve, tenta-se visionar alguma orientação do estado actual desta arte e formular um programa para o futuro aperfeiçoamento da manufactura do livro, tendo em vista um ideal dentro dos limites da realização prática.
Imagens: Escritório do Livro