Giambattista Bodoni
(1740 - 1813)

Nascido em Saluzzo, na Itália, de uma família de impressores, foi convidado em 1768 a fundar e dirigir a Imprensa Real de Parma, cargo que ocupou até o final da vida — atuando paralelamente em sua própria gráfica a partir de 1791. Orientando-se inicialmente pelo trabalho do parisiense Pierre Simon Fournier (ou Fournier le Jeune), distanciou-se gradualmente de seu estilo rebuscado e fartamente ornamentado para alinhar-se com a sobriedade clássica de John Baskerville e Firmin Didot, evoluindo em seguida para um estilo próprio, pelo qual se firmou como o maior tipógrafo do seu tempo. Caracterizado pelo contraste entre traços leves e fortes, seu tipo romano mais conhecido, criado em cerca de 1790 e até hoje revivido, é tido como a síntese do ideal neoclássico em tipografia e o marco inicial dos tipos modernos. E à beleza dos caracteres é que se devia essencialmente a elegância simples e requintada de suas edições, ornadas apenas de ricas gravuras ilustrativas, aclamadas tanto pelo equilíbrio da composição quanto pela excelência da impressão — embora criticadas pelos literatos por seu pouco rigor textual. ¶ Em 1788, inspirado no Manuel Typographique (1764) de Fournier, publicou uma primeira versão de seu Manuale Tipografico, um catálogo dos tipos e ornamentos criados por ele até então. Mas a versão definitiva, bastante ampliada, seria lançada postumamente por sua viúva, em 1818, em dois volumes somando 543 páginas que constituem o seu “testamento tipográfico”. Considerado a sua obra-prima, o Manuale contém 142 conjuntos de fontes romanas, alfabetos gregos, hebraicos, árabes e de diversas línguas orientais, além de números, símbolos musicais e centenas de elementos decorativos, bem como uma introdução endereçada ao leitor (A chi lege) que reúne reflexões acerca de sua arte e princípios definidos ao longo de sua trajetória.

Manual Tipográfico

Ao leitor
· excertos ·

Tradução de Dorothée de Bruchard |*|

Dos quatro principais aspectos de que parece derivar a beleza de um caractere, o primeiro é a regularidade. Alguém que analise o alfabeto de uma língua qualquer não só perceberá que muitas letras distintas possuem entre si traços semelhantes, como verá que todas elas podem ser compostas com um pequeno número de partes idênticas combinadas e dispostas de variadas maneiras. Mas que uniformizando tudo que não serve para distinguir, e acentuando o mais possível as diferenças que a distinção requer, chega-se a definir, para a forma de todas as letras, uma certa lei e regra que produz semelhança sem ambiguidade, variedade sem dissonância, igualdade e simetria sem confusão.

Em segundo lugar vêm a nitidez e o polimento, que decorrem da perfeição dos buris e da primorosa fundição dos caracteres.

A terceira condição é o bom gosto, o qual escolhe as formas mais agradáveis e mais conformes ao gênio da nação e do século. Na escrita, como em todas as coisas, a moda reina e impõe suas regras, ora com razão, ora sem ela. Mas onde não houver boa razão, e onde a moda não tiranizar a livre escolha, o bom gosto há de fundar-se na simplicidade — não grosseira como o seria em letras desenhadas com traços de igual espessura, mas elegante e ponderada como a observada no harmonioso contraste de claro-escuro que é natural a todo escrito produzido com uma pena bem aparada e firmemente empunhada.

A graça é o quarto e último requisito para a beleza de um caractere. Sabemos que não é simples dizer no que consiste a formosura, o garbo, o encanto disso a que chamamos graça. Mas como ela, por certo, quer parecer natural e congênita, mantém-se tão distante da afetação e do esforço que não falharemos se a buscarmos no que há de mais precioso e mais perfeito, no que aparenta ser um puro dom de Deus e um dote da natureza, embora costume ser fruto de longa prática e do hábito, o qual torna tão fáceis as coisas mais difíceis que ao final se consegue, sem mais pensar, realizá-las otimamente.

Um caractere, portanto, será tanto mais belo quanto mais regularidade, nitidez, bom gosto e graça ele possuir.

A idéia do Belo decerto não deve ser confundida com a do Bom e do Útil. São, contudo, como que três distintos aspectos de uma mesma coisa vista por três lados distintos.

É verdade que as edições mais esplêndidas são mais de luxo que de uso, como também é verdade que o luxo segue naturalmente a riqueza.

Em que diremos que consiste a beleza? Em duas coisas, talvez, mais que em quaisquer outras: na congruência, que satisfaz o espírito quando este percebe, pela reflexão, que todas as partes de uma obra conspiram para um mesmo intento; e na proporção, que contenta os olhos, ou melhor, a imaginação, a qual guarda em si certas imagens e formas e a quem mais agrada aquilo que mais lhes corresponde.

A congruência está na harmonia das partes — não tomadas ao acaso, mas escolhidas com vistas a um determinado fim segundo o juízo da razão; de modo que pode ser claramente explicada. Assim, vê-se de pronto que ela quer tudo grandioso nas edições esplêndidas, e, nas despojadas, que tudo conduza à máxima conveniência com uma economia sem mesquinhez.

Quanto à proporção, tanto é claro que ela assimila as coisas a determinados modelos que temos na cabeça e nos servem de regra — como aos escultores, outrora, a famosa estátua de Polícleto —, quanto é difícil definir, em meio à grande variedade de regras nos diversos espíritos, qual é a norma certa para cada gênero.

Só me parece razoável manter um certo meio-termo entre as proporções mais comumente empregadas, desde que se o faça com discernimento. Assim, por exemplo, para avaliar a beleza de um volume no que tange à sua altura, largura e espessura, cumpre ter em conta o formato — in-folio, in-quarto, in-oitavo, in-doze ou outro mais pequeno —, atentando em que formatos menores permitem, sem inconveniente, mais liberdade de escolha.

Para o tamanho das margens, seria um grande erro tomar a média das que são usadas nos diferentes tipos de edição, e o mais das vezes são produto de uma sórdida economia. Também não basta pautar-se somente pelas das belas edições sem considerar o gênero, visto que desconvém às despojadas, por supérflua, a grandiosidade das margens que, por luxuosa, exige-se das esplêndidas.

Neste ponto, deparo-me com um dos problemas mais duvidosos da arte tipográfica. Pois, podendo ela encerrar o retângulo das letras impressas numa bonita moldura — não de uma, mas de infinitas maneiras —, e acrescentar aqui e ali mil outros ornamentos, como frisos, claves, florões, cartelas, iniciais historiadas e gravuras em cobre, assume-se que estes devem ser omitidos, quando supérfluos, no gênero despojado, mas não devem sê-lo no esplêndido. No entanto, não só as mais prestigiadas edições deste gênero são desprovidas de ornamentos, mas Baskerville ainda é expressamente elogiado por tê-los totalmente abolido.

Para resolver este problema convém diferenciar aqueles ornamentos que são, como as letras, gravados em relevo, e como elas, com elas, impressos em nossos prelos, das gravuras que, quer pelo talhe, quer pela impressão, pertencem a uma arte distinta. Estas só se revelam inadequadas quando não são suficientemente belas, não servem a um propósito razoável, ou não representam algo que fica melhor ali do que em outro lugar. Mas se num livro tão linda e primorosamente impresso quanto possa sê-lo juntam-se gravuras trabalhadas, também elas, com a maior maestria de desenho e buril, estas terminam por se apropriar de parte demasiada dos louros da edição. Daí ser necessário, pela glória da tipografia, mostrar tudo quanto ela pode e vale sem o concurso das gravuras. E sem elas é mais bem alcançado isso que vimos ser o intento do luxo dos livros — expressar o amor às letras e consideração pelos autores; um amor que bem pode ir de par com o amor às artes cujas estampas bem gravadas temos em alto apreço, mas que por certo brilha melhor ali onde atua sozinho.

Acrescente-se que as belas-letras e a filosofia, com o tempo, inclinam o gosto dos estudiosos para o simples e o sóbrio, de sorte que a beleza que mais lhes agrada é aquela que não recorre a nenhum ornamento emprestado.

Ora, esse gosto austero que rejeita a frivolidade e o supérfluo condena sumariamente, como puerilidades da arte, aqueles frisos e enquadramentos em que dizíamos que a maestria tipográfica pode ser exibida com muita variedade. Não será sábio ostentá-los, portanto, exceto, talvez, naqueles livros menos apreciados pelos homens de letras, mais voltados para pessoas de requinte não tão desdenhoso.

Quanto mais clássico o livro, mais convém que a beleza dos caracteres se mostre sozinha: é nela, afinal, que consiste, e brilha soberanamente, a glória da tipografia.

Para que um bonito caractere faça boa figura e sobressaia bem na página, deve ser disposto em linhas retas perfeitamente regulares, nem apertadas nem espaçadas demais relativamente à sua altura, deixando-se, em cada linha, intervalos iguais entre uma palavra e outra — como entre uma esquadra e outra —, nos quais não se entremeie nenhum dos vários sinais anexados às letras. E não é negligenciável, se houver notas de pé de página, o cuidado de reparti-las igualmente entre as duas páginas opostas, de tal modo que, onde quer que se abra o livro, as páginas duplas apresentem uma simetria perfeita.

Cumpre também garantir que, além de não haver nenhuma letra faltante, quebrada, borrada ou cheia de tinta, a impressão seja sempre homogênea e não se encontrem lado a lado duas páginas que pareçam não ser da mesma tiragem.

Há quem se queixe do negrume da tinta, embora ninguém possa negar que, quanto mais negro é o texto, tanto mais se destaca, por contraste, na alvura do papel.

Ocorre que, com o passar dos anos, o papel escurece, a tinta esmaece, e não pode o esplendor de uma bela impressão só ser apreciado enquanto ela for nova.

Deixemos agir o tempo, que há de atenuar nossas tintas tanto ou mais do que é necessário para ninguém achá-las demasiado intensas. Em tipografia, mais que em nenhuma outra arte, importa ter em mente os séculos por vir; pois suas obras terão tanta valia para as gerações futuras quanto para os vivos de hoje; e a classe dos tipógrafos talvez seja, entre todas, aquela em que o anseio de ser louvado após a morte resulte mais útil ao público. É isso que os leva a produzir, às vezes com prejuízo, ou com mínimo lucro, edições não apenas belas, mas bem-feitas, e de ótimas obras, e providas de todo aparato que as possa tornar mais proveitosas.

No que diz respeito à arte tipográfica, e embora muito ainda me restasse a dizer, creio ter dito o bastante para que cada um possa refletir por si mesmo e — partindo de Sweynheim e Jenson, passando pelos Manuzio, os Estienne, Vascosan, os Giolito, Plantin, Blaeu, Vitré, os Elzevir, Hacke, Tonson, Baskerville, Foulis, Ibarra, Didot, e chegando, por fim, às nossas prensas — avaliar comparativamente o que de bom e de melhor já se fez e aquilo que ainda pode ser feito.

* * *

NOTA da TRADUTORA (2025)

|*| Esta tradução foi cometida nos idos de 1999 a partir dos excertos selecionados e vertidos em francês por Anne de Margerie, que os incluiu em seu estudo sobre o mestre tipógrafo italiano — J. B. Bodoni. Typograhe italien (1740-1813). Paris: Jacques Damase, 1985.  Num tempo em que a obra original era de difícil acesso entre nós, atrevi-me a retraduzi-los aqui com base nessa versão francesa, refletindo que, com todas as ressalvas que cabem a uma tradução indireta, valia a pena trazer essa pequena amostra de um texto que até então, ou até onde eu sabia, permanecia inédito em português.   ¶   Muitos anos passaram, o Manuale Tipografico fez sua entrada na rede, e hoje sites como o da BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL | ou da LIBRARY OF CONGRESS | oferecem fac-símiles de qualidade dos dois volumes da edição de 1818.   ¶   Amparada no original italiano, pude então, um quarto de século depois, efetuar os vários e necessários reparos naquela primeira tradução indireta e atualizá-la aqui em nova versão.
¶   Em tempo: em 2001, a introdução de Bodoni ganhou uma bonita edição lusitana organizada e produzida por João Manuel Bicker (Manual tipográfico de Giambattista Bodoni. Tradução de Rita Marnoto. Coimbra: FBA / Almedina).

© tradução | Dorothée de Bruchard |, 1999.
Atualizada em abril de 2025.
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