Nascido em Saluzzo, na Itália, de uma família de impressores, trabalhou para o grão-duque de Parma. Criou o tipo que traz seu nome, caracterizado pelo contraste entre traços leves e fortes. Publicou edições refinadas de clássicos gregos, latinos, italianos e franceses, muito admiradas pelos tipógrafos embora criticadas pelos literatos pelos muitos erros ortográficos que continham. Em 1818, sua viúva publicava em dois volumes, somando 543 páginas, seu Manuale Tipográfico, que ele preparara ao longo de 50 anos. (D. B.)
Prefácio ao
Manual Tipográfico
(excerto)
Dos quatro aspectos de que parece derivar a beleza de um caractere, o primeiro é a regularidade. A análise do alfabeto de qualquer língua vai permitir que se encontre traços similares num grande número de letras distintas e mostrar que todas podem ser compostas de poucas partes idênticas, diversamente combinadas e dispostas. Se tomarmos a média de tudo o que não serve para distinguir uma letra da outra, e acentuarmos tanto quanto possível as diferenças mais necessárias a esta distinção, conseguiremos fixar, para determinar a forma de todas as letras, uma lei e uma regra de que surgem uma semelhança sem ambigüidade, uma variedade sem dissonância, uma igualdade e simetria sem confusão.
Em segundo lugar, vêm a nitidez e o polimento, oriundos da perfeição dos buris e da fundição perfeita dos caracteres.
A terceira condição é o bom gosto, que escolhe as formas mais agradáveis e que mais correspondem ao espírito da nação e do século. A moda reina na escrita como em todas as coisas, impondo-lhe regras, razoáveis ou não. No entanto, quando não houver nenhum bom motivo e quando a moda nos deixar livres, o bom gosto será guiado pela simplicidade — não a simplicidade grosseira que se manifestaria em traços uniformemente espessos — mas por uma simplicidade agradável e de boa qualidade, como a que observamos no harmonioso contraste de luzes e sombras jogando naturalmente em todo escrito feito com uma pena bem apontada e firme.
A graça é o quarto e último requisito para completar a beleza de um caractere. Sabe-se que é difícil dizer no que consiste o que há de atraente, encantador e delicioso naquilo que chamamos de graça. Mas como ela sempre deve tender a parecer natural e inerente, deve fugir à afetação e ao esforço, a ponto de não estar errado procurá-la no que há de mais raro e mais perfeito, no que parece ser um puro dom de Deus e de uma feliz natureza, embora ela geralmente não seja senão fruto de longos exercícios e do hábito, o qual torna tão fáceis as coisas mais difíceis que, mesmo sem pensar, realizamo-las com perfeição.
Um caractere será então tanto mais bonito quanto possuir regularidade, nitidez, bom gosto e graça.
Só com muito amor posso falar da arte tipográfica.
A idéia do belo certamente não deve ser confundinda com a do bem e a do útil. Essas três idéias são contudo como que três diferentes aspectos de uma só e única coisa considerada por três lados distintos.
As mais magníficas edições são, na verdade, edições de luxo mais que de uso corrente, e é verdade que o luxo acompanha naturalmente as riquezas.
Mas no que diremos que consiste a beleza? Em duas coisas, talvez, mais do que em outras: a conveniência, que satisfaz o espírito quando, pela reflexão, constata que todas as partes de uma obra tendem a um só e único objetivo; e a proporção que contenta o olhar, ou melhor dizendo, a memória, que guarda certas imagens e formas e apreciará tanto mais o que mais fielmente se parecerá com estas formas.
A conveniência provém de uma combinação de todas as partes, que não devem ser reunidas pelo acaso, mas escolhidas para um fim determinado; é ditada pela razão e pode ser claramente definida; assim, vê-mo-la exigir que tudo seja magnífico nas edições de luxo e que, nas edições de elegância mais simples, tudo concorra para a comodidade sem economia mesquinha.
Quanto à proporção, assim como parece claro que ela torna as coisas parecidas com certos modelos que trazemos na cabeça e nos servem de regra — como, antigamente, aos escultores a célebre estátua de Polícleto — também parece difícil de definir, em função da grande variedade destas regras nos diversos espíritos.
Parece-me apenas sensato ater-se a uma justa medida entre as proporções que notamos serem as mais usadas, com a condição de fazê-lo com discernimento. Com efeito, para julgar, por exemplo, a beleza de um livro no que toca à sua altura, largura, espessura, convém considerar o seu formato — in-folio, in-quarto, in-octavo, in-doze ou um formato menor — levando em conta o fato de que nos formatos menores podemos sem inconveniente usar mais a fantasia.
Para a largura das margens, seria um grave erro tomar a média das edições de todo tipo que não passam, no mais das vezes, do fruto de uma sórdida economia.
Também não convém basear-se somente nas edições de luxo; mas levar em conta o gênero, já que não convém a edições simplesmente elegantes, por inútil, a suntuosidade das margens exigidas para edições fastuosas.
Coloca-se aqui um problema dos mais difíceis: a arte tipográfica pode encerrar o retângulo da página impressa num quadro gracioso, podendo ser infinitamente variado, e acrescentar-lhe mil outros ornamentos, como frisos, vinhetas, florões, cártulas, capitulares ornadas e vinhetas em talho-doce; parece que se podemos deixá-los de lado em edições simples e elegantes em que são inúteis, não devemos fazê-lo em edições do gênero esplêndido. No entanto, vemos que as mais apreciadas edições deste gênero são destituídas de ornamentos e, mais ainda, que Baskerville é elogiado justamente por tê-los inteiramente abolido.
Para bem solucionar este problema é preciso distinguir os diversos ornamentos que, gravados em relevo como as letras, como elas se imprimem em nossas prensas, dos cobres que, seja pela gravura, seja pela tiragem, pertencem a uma arte diferente. Estes só ficam deslocados se mal executados, se sem razão de ser, se não representam nada que fique melhor ali que em outro lugar. Mas, se a um livro impresso do modo mais magnífico e esplêndido vêm juntar-se gravuras trabalhadas com a maior maestria do desenho e do buril, veremos que elas levam a melhor parte no mérito da edição. Eis por quê é preferível, pela glória da tipografia, mostrar tudo o que ela pode e tudo o que ela vale sem o seu concurso. É então que se manifestará mais vivamente o que vimos ser a melhor justificativa para o luxo dos livros: o amor das letras e a consideração pelos autores; amor que pode ir de par com o das artes às quais devemos essas estampas tão belas e bem gravadas, mas que será mais manifesto se não se dividir.
Acrescentemos que as letras e a filosofia voltam aos poucos o gosto dos que as estudam para a simplicidade e sobriedade, a ponto de a beleza mais agradável para eles ser aquela que não se enfeita com nenhum ornamento emprestado.
Ora, esta severidade no gosto, que reprova a frivolidade assim como o supérfluo, proscreve enquanto brincadeiras de arte estes frisos e enquadramentos que permitem ostentar com tanta facilidade a maestria tipográfica. Será portanto mais sensato abster-se deles, salvo talvez nos livros menos ao gosto dos letrados e dirigidos a pessoas de gosto menos refinado e delicadeza menos exigente.
Quanto mais um livro é clássico, mais é conveniente que a beleza dos caracteres apareça sozinha: é nela que principalmente consiste e soberanamente se expõe a glória da tipografia.
Para que um bonito caractere faça bom efeito e sobressaia bem nas páginas, é ainda necessário que ele seja disposto em linhas bem retas de perfeita regularidade, nem apertadas nem espaçadas demais em relação à sua força, deixando entre as linhas — como entre uma esquadra e outra — e entre as palavras, intervalos iguais, sem esquecer dos diversos signos que vão junto às letras. Também não é precaução negligenciável a que consiste, se houver notas de pé de página, em reparti-las igualmente pelas duas páginas opostas: onde quer que se abra o livro, as páginas duplas apresentarão assim uma simetria perfeita.
Há que cuidar ainda não só para que nenhuma letra esteja ausente, danificada, empastada de tinta ou suja de borrões, mas também para que a tiragem seja
sempre homogênea e não se encontrem duas páginas que não pareçam pertencer à mesma impressão.
Tenho esperança de que ninguém mais venha a queixar-se de uma tiragem preta, coisa que alguns ainda reprovam. Não se pode, contudo, negar, que quanto mais preta a
tinta mais ela sobressai na brancura do papel.
Com o passar dos anos, o papel desbota e a tinta esmorece, e o esplendor de uma bela impressão não deve estar destinado a agradar só enquanto ela for
recente.
Deixemos agir o tempo, que acabará embotando nossas tintas o necessário para que não as achemos vivas demais. Ora, não há arte em que, mais que na
tipografia, convenha manter o olhar fito nos séculos por vir; pois não menos para seus descendentes que para seus contemporâneos produz o impressor suas obras. E em ninguém mais que no tipógrafo o desejo ardente de ser louvado após a morte pode ser mais útil ao público. É o que o leva a oferecer, às vezes com prejuízo, edições belas e corretas de livros excelentes, providos de tudo quanto pode torná-los mais proveitosos.
No que toca a arte tipográfica propriamente dita, creio ter dito o suficiente para levar cada um a pensar por si próprio e, a partir da obra de Sweynheim e Jenson, passando pela de Manúcio, dos Estienne, de Vascosan, Giolitti, Plantin, Blaeu, Vitré, dos Elzevir, Hackey, Tonson, Baskerville, Foulis, Barra, Didot, até finalmente chegar aos nossos dias e julgar, por comparação, tudo o que se fez de bom e de melhor, e tudo o que ainda pode ser feito.
© tradução | Dorothée de Bruchard |, 1999
Direitos reservados.
NOTA da TRADUTORA (2016):
Nos idos 1999, meu único contato com o célebre Manual de Bodoni se dera através do excerto,
traduzido por Anne de Margerie, constante na edição dedicada ao mestre tipógrafo italiano
produzida por Jacques Damase (Paris, 1985). Desse excerto é que fiz aqui (a contragosto)
a tradução indireta,
não me sendo possível, à época, localizar o original italiano.
Alguns anos depois, tive a grata oportunidade de aceder à íntegra do Manuale
graças à bonita EDIÇÃO PORTUGUESA organizada por João Manuel Bicker (Coimbra:
Almedina, 2001, trad. Rita Marnoto). Até que, mais recentemente, pude afinal apreciar,
disponibilizada on line por Rare Book Room, a obra do grande tipógrafo em sua forma original.
| EDIÇÃO FAC-SIMILAR DO ORIGINAL ITALIANO |