Glória aos mãos sujas

Ana Luisa Escorel


Resenha do livro O Gráfico Amador, de Guilherme Cunha Lima.
(RJ: Editora da UFRJ, 1997.)

Capa da edição de 2014, pela Ed. Verso Brasil.

Apesar de se constituir no primeiro objeto gráfico com características de produto industrial, o livro, a partir de Gutenberg, tendeu a ser examinado pelo prisma das possibilidades da bibliologia que destaca os aspectos referentes ao conteúdo, em detrimento daqueles referentes ao produto e sua fabricação. Nesses termos, dados relativos à autoria do texto, das ilustrações, à data de publicação e à casa editora sempre foram valorizados por qualquer ficha catalográfica na mesma intensidade com que se eclipsou a identificação do projeto gráfico, dos tipos, papéis e processos de reprodução utilizados.

Mesmo para uma observação superficial esse quadro revela os resíduos de um comportamento aristocrático, digamos assim, que insiste em moldar a produção intelectual na fôrma de hierarquias passadistas. Como se, num princípio de século já distante, a Bauhaus não tivesse mostrado que o trabalho técnico pode ser condição para o surgimento da aventura criadora, mesmo quando voltado para o atendimento de necessidades concretas.

O filme, no entanto, que assim como o livro também é um produto industrial, sempre dedicou tempo e espaço ao registro das informações relativas à equipe responsável por sua fabricação. De fato, o cinema adotou o letreiro, conjunto de créditos que podem figurar no princípio ou no final do filme, como o lugar onde todas as funções envolvidas se expressam e as hierarquias se acomodam. Com isso, demonstrou ter plena consciência da importância que a soma das aptidões individuais assume no resultado final do produto. Aliás, poderia se afirmar, sem temor de exagero, que a existência de qualquer produto industrial pressupõe o desempenho de equipes multidisciplinares. Quanto maior a complexidade do processo, maior a necessidade de envolver nele especialidades diferentes e complementares que possam dar conta do escopo proposto.

Ora, o desequilíbrio na valorização dos aspectos que compõem o livro como objeto, de um lado, como transmissor de conhecimento e informação, de outro, ilustra bem a resistência que ainda existe em se aceitar como culturalmente legítimas as contribuições trazidas pelo produto industrial à sensibilidade e à inteligência do homem contemporâneo. E, embora não seja essa a preocupação de O Gráfico Amador, uma leitura atenta certamente dará com o registro dessa dinâmica percorrendo o livro como as águas silenciosas de um rio subterrâneo porém sempre presente.

Para situar seu objeto, a produção de uma editora fundada por jovens artistas e intelectuais pernambucanos e que esteve ativa entre os anos de 1955 e 1961, Guilherme Cunha Lima faz um minucioso inventário do que foi a introdução da tipografia no Brasil. Daí, passa ao registro detalhado de todos os impressos fabricados pelo grupo e à identificação de seus integrantes, completando a abordagem com considerações extremamente interessantes acerca da filiação de O Gráfico Amador ao modernismo nordestino de Gilberto Freire, de cunho mais regionalista, e de Vicente do Rego Monteiro, cosmopolita ligado à França e a Mário Oswald de Andrade, em São Paulo. Finalmente, sempre com o propósito de situar o desenvolvimento do livro brasileiro enquanto produto gráfico, chama a atenção para a influência que a poesia concreta exerceu sobre a comunicação visual que se fazia em nosso país, na segunda metade da década de 60, ilustrando suas afirmações com exemplos bastante expressivos.

Ainda que Guilherme tenha privilegiado a descrição como princípio organizador de seu texto, evitando os riscos da reflexão de cunho mais pessoal, sobressaem a consistência da pesquisa empreendida, assim como algumas relações de causa e efeito apontadas pelo trabalho, haja visto as interferências do contexto político e cultural do país sobre o grupo estudado, nos anos que antecederam o golpe de 64. Sem esquecer que o olhar de designer, lançado por Cunha Lima, confere uma tonalidade nova ao tema já bastante explorado da produção de livros no Brasil. É justamente essa ótica particular que permite ao autor não só sugerir uma forma mais completa de catalogação bibliográfica, incluindo nela dados como a autoria do projeto de design, a quantidade e a técnica das ilustrações, a natureza da composição e da impressão do texto, como também comentar com extrema segurança aspectos das publicações examinadas, relativos à concepção visual e à fabricação.

Aloísio Magalhães.

É de fato supreendente que num país ainda marcado pelos códigos e pelos valores de uma produção artística que parece resistir até hoje à revolução trazida pela indústria, na década de 50, distante da arrogância do eixo Rio / São Paulo, tenha surgido esse gurpo originalíssimo. O Gráfico Amador contava em seu núcleo com as figuras ímpares de Aloisio Magalhães, Gastão de Holanda, Jose Laurenio de Melo e Orlando da Costa Ferreira. Com exceção de Aloisio, nesse período ainda um artista plástico, os outros três eram poetas e ficcionistas e pretendiam, ao fundar a editora, criar condições para publicar e distribuir seus próprios textos. No entanto, a maneira como se desenvolveu a experiência atesta a qualidade intelectual desses quatro "mãos sujas", apelido que pretendia classificar os membros do grupo: os "mãos sujas" punham a mão na massa e a sujavam com as tintas e a lida dos serviços do projeto, composição e impressão; os "mãos limpas" eram os que se limitavam à conversa, ao apoio, à troca intelectual e à criação de material para as edições. Pois bem, não por acaso, entre os "mãos sujas" parece ter se desenvolvido uma consciência aguda das riquíssimas relações existentes entre a produção artística e a seriação industrial. Se bem que as tiragens dos impresos produzidos pelo O Gráfico Amador fossem pequenas e o processo de reprodução utilizado, basicamente o tipográfico, fosse operado de forma artesanal, esse momento da juventude parece ter introduzido no horizonte dos quatro cavalheiros a chave para a compreensão do sentido profundo das formas de manifestação artística no mundo de hoje. Aloisio e Gastão se tornaram designers. Orlando acumulou uma enorme erudição bibliológica publicando textos importantes como Imagem e Letra: Introdução à Bibliologia Brasileira. José Laurenio acrescentou às atividades de poeta, ficcionista e requintadíssimo tradutor do inglês, a de especialista em editoração, passando a colaborar nessa atividade com algumas das maiores editoras do país.

Muito ainda se poderia extrair do livro de Guilherme Cunha Lima, certamente a pesquisa e a exposição mais abrangentes e documentadas que já se fizeram no Brasil, sobre tema semelhante, por alguém cujo ponto de vista parte do universo do design. Poderia se lembrar a extrema qualidade gráfica e, em certos casos, a ousadia dos livros e impressos de caráter efêmero fabricados por O Gráfico Amador. Poderia se enumerar a incrível diversidade dos que, de uma maneira ou de outra, estiveram ligados ao grupo ou como membros ativos ou como sócios da editora. E esta lista incluiria gente do tope de Ariano Suassuna, Artur Lício Pontual, Francisco Brennand, João Alexandre e Ana Mae Barbosa, Reynaldo Fonseca, Sebastião Uchoa Leite e os irmãos Henrique e José Mindlin, para lembrar os que talvez tenham se tornado mais eminentes.

Concluindo, fica a ardorosa recomendação de leitura e a esperança de que textos como esse contribuam para abrir espaços de cidadania aos "mãos sujas" de qualquer origem, nos restritivos terrenos da produção cultural brasileira.

ANA LUISA ESCOREL
é designer, escritora, editora da | Ouro sobre Azul |.
Autora, entre outros, de Brochura Brasileira:
objeto sem projeto (1972) e Anel de vidro (2014).
Resenha publicada em seu
O Efeito multiplicador do design
(SP: Senac, 1999)
Reproduzida com autorização da autora.


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