Colecionismo: o desejo de guardar
Vera Regina Luz Grecco
Publicado originalmente no Jornal do MARGS
n. 83 (Porto Alegre, junho de 2003).
Esta pequena história do colecionismo não se relaciona especificamente ao livro,
mas está estreitamente ligada à bibliofilia e à história das bibliotecas...
A necessidade de colecionar é contemporânea da coleção de objetos utilitários que acompanhava o homem primitivo em seus deslocamentos. Com o tempo, foi estendida aos objetos de uso religioso e, aos poucos, aos evocativos, pois as ações humanas não são aleatórias, têm significado, são regulamentadas, repetidas, aperfeiçoadas e revestidas de simbolismo que pode ser transferido a elementos palpáveis.
O colecionismo ligou-se, desde o início, à idéia de posse que, por sua vez, gerou o conceito de propriedade. Possuir objetos tornou-se manifestação de poder. Assim, a coleção foi ultrapassando sua funcionalidade e tornando mais evidente seu lado simbólico.
Na antigüidade, as grandes coleções estão ligadas aos senhores, reis e imperadores, mas são paralelas ao desejo das culturas de conservar, para o futuro, seu patrimônio. Aurora Leon nos aponta, em seu livro El Museo, que o “colecionismo, apesar de seus problemas, foi um fenômeno sociocultural necessário ao aparecimento da instituição museológica”.
As gerações humanas foram moldadas pelas que as antecederam ou com elas conviveram. São culturalizadas por intermédio de um lastro cultural preexistente. Assim, forma-se um elo de continuidade mutável, baseado no fato de que o homem aprende a viver e pode aprender a viver melhor.
O Patrimônio é constituído por bens passíveis de serem transmitidos aos herdeiros e, num sentido mais amplo, é tudo o que nos cerca, que nós reivindicamos como nosso. Segundo Dominique Poulot, requer uma intervenção voluntária a fim de que sua preservação e entendimento sejam assegurados.
O museu, como o conhecemos hoje, símbolo e guardião do patrimônio, reunindo artefatos da nossa memória, partícipe da transmissão de conhecimentos e reflexo da nossa identidade, começou a ser gestado na Idade Média quando a Igreja reuniu grandes coleções.
O Renascimento italiano, com o humanismo e a investigação dos testemunhos da arte clássica e, para Luis Alonso Fernández, permitiu, se não a criação do conceito de museu moderno, pelo menos o precedente histórico mais relevante. O termo museu começou a ser utilizado, num sentido próximo do atual, por Cósimo de Médicis que aplicou-o à sua coleção de códices e curiosidades. O humanismo renascentista acrescentou ao valor hedonístico e econômico da obra de arte, herança romana, um valor formativo e científico para o homem educado. O valor do objeto clássico é agora estético e histórico. O material do passado aí está para recriar e interpretar a cultura clássica.
A França patrocinou um colecionismo, como forma sutil de prestígio e enriquecimento do patrimônio, e impôs, conforme Aurora Leon, o estilo da corte que foi assumido pela burguesia. Na burguesia ascendente, eram encontrados todos os tipos de colecionadores. Rica e ilustrada, ela produzia bens e consumia arte. Entrementes, já havia inquietude entre os estudiosos para que os museus fossem abertos ao público.
Até o final do séc. XVIII, as coleções tinham um caráter privado. O acesso às coleções só se efetivou com a Revolução Francesa que converteu as grandes coleções reais em museus públicos, e o museu foi estabelecido como um dos instrumentos da democratização do saber.
O Romantismo desmantelou as teorias escolásticas e neoplatônicas, resquícios das correntes literárias e filosóficas anteriores, em favor de uma filosofia que, na opinião de Fernández, considerava que tudo o que significasse mudança levaria o homem a um estado trágico. Portanto foi significativo que a criação dos museus, no séc. XIX, tenha se utilizado da tradição para servir de apoio à existência humana. O museu respondeu, então, e responde hoje, à necessidade de colecionar e preservar para o futuro, completando o processo histórico da humanidade, provendo-a de outros elementos além dos da história escrita. O conhecimento do passado, através de objetos e registros que sobreviveram, se impôs, pois objetos não estão sujeitos a erros de interpretação humana.
O fim do séc. XIX conheceu o museu como depósito de objetos exóticos dos despojos coloniais. As expedições científicas às colônias alimentavam os acervos e transformaram os museus em instituições de pesquisa científica. A introdução da pesquisa levou o museu a especializar-se por áreas do saber e a remanejar as coleções, mas o museu ainda era voltado para si mesmo.
Todos sabemos que reconhecer o passado é conhecer-se melhor. Quem se conhece tem identidade, sentimento de pertencer, faz parte de um grupo humano específico.
O desejo das culturas de conservar para o futuro seu patrimônio permitiu que através dos séculos ocorresse uma acumulação patrimonial, por isso, assinala Fernández, a realidade patrimonial precedeu a existência de uma ciência museológica. Mas onde guardar o patrimônio? No início, os museus ocuparam palácios já existentes, cuja arquitetura imponente poderia, e certamente o fez, intimidar o público, além de obrigar a execução de um mínimo de adaptações para obter certa funcionalidade.
No século XX a arquitetura começa a procurar a verdadeira identidade do museu, há necessidade de pensar o museu, planejar a adequação entre conteúdo e continente. Inicia-se, também, intensa atividade investigadora para elaborar as melhores formas de organizar e expor em museus.
A revitalização do museu, a partir da primeira guerra mundial, foi reflexo do sentimento do homem que passou a se sentir deslocado, perdido de suas origens, e buscou sua tradição no museu. Outra conseqüência do clima pós-guerra foi o aparecimento de novos museus, principalmente em países como o Brasil que presenciou a criação do MASP (Museu de Arte de São Paulo), do MAM (Museu de Arte Moderna) de São Paulo e do MAM do Rio de Janeiro. No conjunto dessas ações está incluído o MARGS, criado em 1954, e prestes a completar cinqüenta anos.
VERA REGINA LUZ GRECCO
é técnica em assuntos culturais da SEDAC
(Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul)
e pós-graduada em Museologia pela UFRGS.
Reproduzido com a autorização da autora.
Imagem: Escritório do Livro