O livro de papel
Arnaldo Campos
(1932 - 2012)
Publicado originalmente com o título “A Arte do livro” em
A Magia do papel
(Porto Alegre: Riocell / Marprom, 1994. Org. Zilá Bernd)
Foram os muçulmanos e os judeus que introduziram o papel na Europa. Os signati, ou cruzados, na denominação tardia, também trouxeram folhas de papel sob suas vestes de combate ou entre os utensílios transportados no retorno do oriente a seus países de origem. Feito de trapos, ex rasuris panorum veterum, na conceituação latina de Pedro, o Venerável, abade de Cluny, em 1125, o novo suporte de escrita europeu, também chamado charta damascena, porque emigrara de Damasco, não tinha aparência atrativa em meados do século XII, quando começou a ser produzido no leste espanhol por Abu Masafays, um mouro, passando a ser conhecido pelo nome catalão de paper, que resultaria no francês e no alemão papier, no português papel, no russo papka e no inglês paper. Grosso e peludo, dava a impressão aos que o manuseavam de haver sido feito de algodão. Muitos judeus que negociavam com roupas velhas logo se puseram a fabricá-lo, tornando-se em breve os maiores produtores e atacadistas da Espanha. Eles forneciam para a Cúria Real, para o Departamento de Estado, abasteciam os mosteiros e o Ministério Real de Barcelona, onde em 1392, foram vítimas de um plano que eliminou judeus e conversos, entre os quais alguns que haviam enriquecido com o papel.
No século XIII, ainda o chamavam de “pergaminho de trapo”, e continuava enfrentando a má vontade de governantes como o imperador Frederico II, que, em 1221, proibiu sua utilização em documentos públicos. De fato, a difusão do papel na Europa encontrou resistências. Muitos o consideravam extremamente frágil quando comparado com o pergaminho — no que tinham razão — e só admitiam seu uso para fins menos nobres, como cartas, rascunhos, contabilidade, embrulho. Os depoimentos dos templários, interrogados em 1309, foram lavrados sobre papel.
Os padres, a princípio, não quiseram aceitá-lo porque chegara pelas mãos da gente de Maomé. Intelectuais apegados ao passado também se oporiam por simples preconceito. Foi o caso do humanista Petrarca, já no século XIV, que se recusava a receber livros de papel ao lado dos 200 códices de pergaminho de sua biblioteca.
Não obstante tais limitações, o papel, bem mais barato que o pergaminho, não pararia de ocupar espaços, embora lentamente, nos primórdios. Em Fabriano, na Itália, melhorariam a técnica de batimento dos trapos e inventariam a filigrana, o desenho apenas visível na contra-luz, que fez circular pelo mundo as marcas dos fabricantes italianos: letras e variados símbolos, muitos de procedência bíblica.
Para obterem um papel de boa qualidade, os fabricantes necessitavam de grande quantidade de água límpida, cerca de dois mil litros por quilo. E de muitos trapos, cabendo aos trapeiros profissionais, que quase sempre trabalhavam para negociantes de roupas usadas, a recolha do material, de porta em porta, pagando em dinheiro ou em miudezas. Uma vez juntados os trapos, selecionavam-se os brancos, os únicos imediatamente aproveitáveis como matéria-prima para a polpa. Os trapos coloridos tinham de ser previamente branqueados.
Com a invenção da tipografia por Gutenberg, meio século depois, um novo e definitivo cliente, o impressor, passaria a consumir a maior parte da produção dos papeleiros. Um prelo, em condições normais de funcionamento, exigia cerca de três resmas por dia. Em poucos anos, os fabricantes de papel devem produzir no mínimo mil resmas diárias para suprir a nova demanda, entendendo-se por resma, na época, 20 mãos de 25 folhas. Fornecer papel a impressores de livros passa a ser um dos negócios mais lucrativos a que alguém pudesse se dedicar. Na medida em que a tipografia se desenvolve e devora mais e mais papel, os fabricantes desta mercadoria passam a se interessar pela impressão de livros, e não foram raros os casos de papeleiros que se tornaram impressores. Lefebvre e Martin, em O aparecimento do livro, lembram que isto ocorreu desde o início da nova atividade, pois “um dos associados de Gutenberg em Strasburgo era dono de uma fábrica de papel” e chamam a atenção, os mesmos autores, para o fato de que “os mais ricos, entre os negociantes de papel, são exatamente os fornecedores dos livreiros”. Como conseqüência, “o desenvolvimento do centro papeleiro favorece o do centro tipográfico vizinho”, aparecendo os papeleiros, seguidamente, como financiadores das tipografias, e passando a ser comum “os exemplos de tradicionais famílias papeleiras que investem capitais na edição”.
A partir da segunda metade do século XV, portanto, surge o livro impresso. Os que foram lançados desde aquele período até o ano de 1500 são chamados de incunábulos (do latim incunabulum, berço). O estudo dos incunábulos é hoje um capítulo da maior importância na bibliognosia, especialmente pelo que nos revela sobre as técnicas de confecção. O mais conhecido, e um dos primeiros e mais belos incunábulos, é a Bíblia de Gutenberg, a B-42, livro que inaugura, oficialmente, a fundação da imprensa no Ocidente. Nenhum dos impressos geralmente atribuídos a Gutenberg traz o seu nome. Só a B-42 é unanimemente reconhecida como obra de sua tipografia, embora alguns ainda duvidem de que ele a tenha concluído, considerando mais provável que a finalização do trabalho tenha ficado a cargo de Schoeffer, um dos seus colaboradores. Cada página é formada de duas colunas, contendo 42 linhas (daí ser conhecida pela abreviatura de B-42), impressas em gótico, no fraktur, a letra negra que se usava nos grandes manuscritos de luxo. Compreende o texto integral da Vulgata, de São Jerônimo, constando de dois volumes, sem nome do impressor. Contém 1.282 páginas tecnicamente perfeitas. O impressor reservou espaços para o iluminador desenhar as letras ornadas: as iniciais e as cabeças de capítulos. Para que se tenha idéia do valor das B-42, lembramos que, em 1926, um americano pagou 120 mil dólares por um exemplar da Biblioteca do Mosteiro austríaco de Melk.
Outro incunábulo de grande importância, saído da mesma tipografia, é o Psalterium moguntinum, de 1457, impresso por Schoeffer. Trata-se do primeiro livro impresso datado e assinado. Apresenta também a primeira gralha da era da imprensa: no colofão da obra [Figura ao lado], em vez de Psalmoe, foi impresso Spalmoe.
Conhecem-se cerca de 30 mil incunábulos, correspondentes a 13 mil diferentes títulos. Considerando-se o muito que se perdeu, acredita-se que tenham circulado 20 milhões de volumes, mais de um terço sem datação, nem local em que foi impresso, nem nome do impressor. As páginas não são numeradas. A maioria constitui-se de fólios e in-quartos, embora muitos tenham saído em oitavo e até em tamanhos menores, verdadeiras miniaturas, cobiçadíssimas pelos bibliófilos. O menor de todos os incunábulos conhecidos é o Horae ad usum sarum, composto de 11 linhas por página, medindo 33 milímetros de altura. Foi publicado pelo tipógrafo francês Julian Notary, no ano e mês em que Cabral descobriu o Brasil.
Os editores do século XV, com raras exceções — como ainda hoje —, publicavam o que os leitores queriam. A Bíblia foi o livro mais editado no período dos incunábulos. Só a Vulgata Latina alcançou 133 edições. Santo Tomás de Aquino, com cerca de 300 edições, foi o autor mais lido pelos que se envolviam em discussões sobre temas religiosos. Na área das ciências, a medicina comparece com as obras de Galeno e Avicena. Um manual de cirurgia (Buch der Chirurgia) foi publicado na Alemanha, em 1497. De matemática pouco se editou. Elementos de Geometria, de Euclides, teve apenas duas edições ao longo do século XV. Já Geografia, de Ptolomeu, cuja edição príncipe é de 1475, teve sete edições até 1500. Um fólio de grande sucesso foi a Carta de Cristóvão Colombo sobre as ilhas recém-descobertas, impresso em Barcelona no ano de 1493, e que alcançou 12 edições em 12 meses. Na literatura, os clássicos latinos foram os que mais apareceram, destacando-se Cícero, Ovídio e Horácio. Mas a obra de ficção mais lida foi a novela Dois amantes, do Papa Pio II. Dos filósofos gregos, Aristóteles, como sempre, foi o mais editado.
Nos dois séculos seguintes à era dos incunábulos, o papel não sofreria modificações. Por um período de 600 anos, a partir do início da sua fabricação na Europa, no século XII, até o século XVIII, seria praticamente o mesmo, espesso e escuro, dependente de trapos brancos e da água límpida dos cursos superiores dos rios. A fôrma com vergaturas e pontusais, visíveis na textura do produto final, não apresentaria alterações consideráveis desde Abu Masafays, no tempo da invasão da Península Ibérica pelos árabes. Só nos anos 50 do século XVIII, o papel receberia um notável aperfeiçoamento graças ao empenho de John Baskerville, ex-mestre de escrita, ex-gravador de pedras tumulares que, aos 50 anos, por diletantismo, dedicava-se à tipografia, tendo se especializado no desenho de tipos. Ele conseguiria obter, mediante emprego de uma rede de arame de finíssima contextura, um papel sem sulcos, acetinado, que os franceses batizaram de papier vélin, papel velino, porque lembrava o requintado pergaminho do mesmo nome. O primeiro livro editado no novo papel foi um belíssimo Virgílio (Bucolica, Georgica et Aeneis), saído da oficina de Baskerville em Birmingham, no ano de 1757 [Figura ao lado]. Os Didot, famosos impressores franceses, logo adotariam o papel velino. Na Itália, foram os Bodoni os primeiros a usá-lo em suas obras monumentais.
No final do século XVIII, ao apagar das luzes, surge a Fourdrinier, a poderosa máquina de produção contínua, que abriria a era do fabrico em grande escala do papel. Este poderoso avanço tecnológico viria desafogar — não totalmente, devido à escassez de trapos — o enorme crescimento da demanda que já vinha se fazendo sentir ao longo do século XVIII e que se acentuaria vertiginosamente desde os primeiros decênios do século XIX, quando as edições literárias ganhariam extraordinário impulso com o apadrinhamento do romance pela burguesia. O fantástico sucesso de algumas edições, como a do Corsário, de Lord Byron, que vendeu dez mil exemplares já no dia do lançamento, em 1814, é um acontecimento que contribui para caracterizar o boom literário e livreiro. O aparecimento de novos jornais diários na Europa e na América também exigia mais e mais bobinas de papel. Foi nos jornais e nas revistas do século XIX, aliás, que os primeiros romances seriam publicados em folhetins, a partir de 1836, estreando com La Veille fille, de Balzac.
A enorme e sempre crescente procura de matéria-prima para a elaboração da polpa do papel fez com que os trapos escasseassem e, conseqüentemente, encarecessem. Ao final do século XVII, o custo do papel já representava 50% do preço final do livro. Assim, a busca de um sucedâneo era um imperativo que levaria à elaboração do papel feito de pasta de madeira, que é o que até hoje se usa, embora, no que diz respeito à durabilidade, esteja em grande desvantagem em relação ao papel de trapos. A perspectiva de vida das publicações em papel de celulose não ultrapassa algumas dezenas de anos, enquanto que os livros manuscritos ou impressos sobre a charta, inventada pelos chineses e aperfeiçoada por Baskerville, vêm atravessando os séculos.
Alguns jornais contemporâneos como o New York Times e o Chicago Tribune, tendo em vista a preservação de suas edições originais, imprimem exemplares destinados a bibliotecas e ao seu arquivo em papel de trapos.
Alguns futurólogos andaram marcando data para a morte do livro impresso. O mais famoso, Marshall McLuhan, disse que isso ocorreria na década de 80 do nosso século. Errou feio. Quem morreu foi ele, coincidentemente na mesma década. O livro impresso, apoiado na grande indústria do papel, continua vivo e florescente. Os cinco milhões de exemplares produzidos no início da centúria, no mundo inteiro, são hoje contados aos bilhões.
ARNALDO CAMPOS (1932-2012)
escritor e livreiro, foi proprietário das livrarias Vitória
e Porto do Livro, em Porto Alegre.
Autor, entre outros,
de A Ceia do diabo (romance),
A Boa guerra (novela), e
Breve História do Livro (ensaio).
Pelo Escritório do Livro,
publicou
/ Um Livreiro de todas as letras /.
Texto reproduzido com a autorização do autor
Imagens: Escritório do Livro