Histórias do livro

· notas esparsas ·

Dorothée de Bruchard

Cena de feira em Le Chevalier errant, de Thomas de Saluces, c. 1404, fol. 167r.
Paris, BnF, Ms. fr. 12.559.   | EDIÇÃO FAC-SIMILAR |

FEIRA DO LIVRO · Surgidas na Idade Média, época de distâncias difíceis e comunicação precária, as feiras constituíam uma ocasião privilegiada de contatos e encontros, um espaço por excelência de intercâmbio e grandes negócios. Nelas se reuniam pessoas e mercadorias vindas de longe, circulavam histórias de terras distantes, exibiam-se artistas e invenções impensáveis — o mundo ficava mais rico e maior, e não por acaso o termo feira é etimologicamente ligado a feriado, dia de festa. O livro foi se introduzindo nas feiras sobretudo a partir do advento da imprensa, quando a produção de grandes tiragens levou os impressores a buscar expandir seus mercados. Sua presença se fez mais expressiva em algumas delas, particularmente as de Lyon e Frankfurt que, já no século XVI, se tornavam eventos incontornáveis do mundo editorial. Impressores e livreiros de toda a Europa, fabricantes de prensas, fundidores de tipos, papeleiros, além de representantes de diferentes ofícios (xilogravadores, tradutores, escritores...) ali se encontravam duas vezes ao ano durante 15 dias, para assuntar, negociar, divulgar produtos e oferecer serviços. Um momento de confraternização e trocas efetivas de que todos saíam lucrando em mais de um sentido.

Iluminura do Libro de los Juegos, de Afonso X de Leão e Castela, 1283.
San Lorenzo de El Escorial (Espanha), Real Biblioteca del Monasterio.

TEXTO · Se o pensamento é um fio de linha, o narrador é um fiandeiro — mas o verdadeiro contador de histórias, o poeta, é um tecelão. Essa velha abstração, própria das narrativas faladas, foi transformada em um fato novo e visível pelos escribas. Após longa prática, seu trabalho ganhou uma textura tão homogênea e flexível que a página escrita passou a ser chamada de textus (tecido, em latim).

Robert Bringhurst
Elementos de estilo tipográfico.
Trad. André Stolarski. Cosac Naify, 2005, p. 32.

Detalhe da | Biblioteca da Catedral de Hereford |, Inglaterra, que ainda
hoje mantém seus livros presos às correntes originais.

O LIVRO ACORRENTADO · A imagem é ilustrativa de uma época em que a leitura era privilégio de poucos e a palavra escrita, o conhecimento, se achavam sob monopólio e controle das instâncias do poder — notadamente da Igreja. Mais prosaicamente, porém, o LIBER CATENATUS atendia, na origem, a uma razão de ordem prática:

desde pelo menos o século V, era costume deixar livros expostos nas igrejas para contemplação dos fieis. A fim de evitar o roubo ou extravio de um objeto único, precioso, de laboriosa e custosa confecção, eram eles presos à parede, ou ao púlpito, por pesadas correntes. Posteriormente, a estratégia se estendeu aos volumes disponíveis para consulta em bibliotecas, em especial as universitárias.

Jan Davidsz. de Heem. Natureza morta com livros, c. 1625. Paris, Institut Néerlandais.

LIVROS DEMAIS · A indústria editorial se expandia a todo vapor no século XVIII, Século das Luzes em que o livro se firmava como veículo essencial de ideias de renovação. Crescia, simultaneamente, certo desconforto diante do imenso volume de obras publicadas — uma inquietação que se fizera sentir desde muito cedo após o advento da imprensa Ver artigo de Peter Burke | e era agora expressa no próprio verbete Livro da Encyclopédie de Diderot e d’Alembert, onde se lê:

A prodigiosa quantidade de livros chegou a tal ponto que se tornou impossível não só ler todos eles, como saber qual o seu número e conhecer todos os títulos. [...] É mais fácil esgotar o oceano que o número fabuloso de livros, mais fácil contar grãos de areia que os volumes existentes. [...] Felizmente, não somos obrigados a ler tudo o que se publica.

Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1765, v. 9, p. 608a.
| TEXTO ORIGINAL |

A PROVA DO FOGO · Santo ou herege? Era prática usual na Idade Média, que privilegiava o milagre face ao juízo racional, as divergências serem dirimidas por meio da “prova do fogo”.

Em 1207, um acalorado debate teológico irrompeu na cidade de Fanjeaux, sul da França, envolvendo, de um lado, os seguidores do bispo cátaro Guilhabert de Castres, e de outro, os do frade Domingos de Gusmão — um enviado especial designado pelo papa Honório III para conter o movimento catarista que então se espalhava por várias regiões da Europa. Ao fim de acirradas discussões, já tendo esgotado seus argumentos, cátaros e católicos romanos decidiram recorrer à arbitragem divina. Tratados e teses de ambas as partes foram então lançados ao fogo. Reza a lenda que, enquanto os livros cátaros eram consumidos pelas chamas, a obra de Domingos pairava milagrosamente no ar — uma história que decerto contribuiu para a sua posterior canonização...

Pedro Berruguete. Santo Domingo y los albigenses, 1499. Madri, Museo del Prado.


BIBLIOTECA · O termo bibliothêkêbiblion (papiro, livro) + thêkê (caixa, estojo, depósito), trazido para o latim como bibliotheca — designava genericamente, para os antigos gregos, um espaço reservado aos livros. De início, referia-se a um estojo usado para proteger os rolos manuscritos, ou então um recipiente cilíndrico de metal, madeira ou pedra em que se acomodavam os vários volumes de uma obra, ou um conjunto de obras. Com o tempo, passou a indicar o local onde eram depositados esses estojos: um móvel, um cômodo, um edifício especialmente destinado a reunir e abrigar uma coleção de livros.

Livro de Horas de Maastricht (Holanda, séc. 14).
British Library, Stowe MS 17, f. 197v.

A MÃO QUE LÊ · Desenhada quer por escribas e iluminadores, quer pelos leitores, a manícula (do latim manicula, mão pequena) que se vê, às vezes, às margens dos antigos manuscritos e incunábulos, dedo indicando algum ponto do texto, cumpria variadas funções. Servia para ornamentar os textos, num tempo em que a escrita era sagrada e devia necessariamente ser bela; e para orientar a leitura, destacando trechos tidos como mais importantes e facilitando sua memorização. Significava, mais que nada, a interação do leitor com o texto: essas marcas de leitura imortalizadas nas margens, no mais das vezes anônimas, nos falam de como, durante séculos, eram apreendidos os textos e elaborado o conhecimento. Representando a mão que folheia o volume, afaga o texto, percorre a página, a mão que busca, tateia, se detém, e escreve, a manícula figura simbólica e fisicamente, no objeto livro, a presença do leitor. Uma tradição medieval que se perpetuou bem depois do advento da imprensa, foi aos poucos esquecida, mas permanece na língua em termos como “manchete”, “mão única”, “contramão”...   | veja mais |

À direita: manícula num exemplar de De Duodecim Periculis, de Bernardino de Siena. Antuérpia: Van der Goes, 1487.

FALHA GRÁFICA · As gravuras criadas por John Tenniel para ilustrar Alice in Wonderland (1865) permanecem ainda hoje associadas à obra de Lewis Carroll. Retomadas inúmeras vezes em edições posteriores, frequentemente colorizadas, as ilustrações de Tenniel cristalizaram a imagem de Alice e demais personagens na memória literária e editorial, servindo inclusive de referência a Walt Disney para a criação do desenho animado lançado em 1951. Um fato chama a atenção, na edição original desta obra aclamada até hoje por várias gerações de leitores:    Tenniel, talentoso cartunista e ilustrador, conhecido por seu trabalho na revista Punch, ficou francamente insatisfeito com a qualidade da impressão de uma primeira tiragem de dois mil exemplares pela Macmillan, em junho de 1865, e pediu que fosse refeita. Carroll, que o convidara pessoalmente para ilustrar o volume, concordou, mesmo arcando pessoalmente com os custos de nova tiragem por outro impressor. A anedota é reveladora do quanto, em século de Revolução Industrial, as modernizadas gráficas oitocentistas, mesmo aptas a produzir vistosos volumes ornamentados, ainda precisavam se aprimorar no uso dos novos e fascinantes recursos tecnológicos — que não eram, por si só, garantia de qualidade.

EXPLICAR · do latim ex-, fora + plicare, dobrar. O leitor da Antiguidade segurava o volumen com ambas as mãos e, enquanto com a esquerda ia enrolando a parte já lida, com a direita tratava de explicare, desdobrar, desenrolar, desenvolver, expor, mostrar o texto ainda por ler.

Detalhe de um afresco de Pompeia, (in The Care of Books, de J. W. Clark (Cambridge University Press, 1901, p. 28).

Detalhe de página do Vergilius aldino, em exemplar da John Rylands
Library, Manchester, R.U..

GRIFO · Em 1501, Aldo Manúcio publicava em Veneza, com as Obras de Virgílio, o primeiro livro impresso num tipo que causaria um impacto duradouro na composição tipográfica ocidental.  ¶  Mais estreito, levemente inclinado, o novo tipo era obra do grande desenhador, gravador e fundidor de caracteres bolonhês FRANCESCO GRIFFO (1450-1518), cujo romano permanece ainda hoje a referência matricial da tipografia no ocidente. À diferença, porém, de outros tipógrafos consagrados (em geral também editores-impressores) que imortalizaram seu nome em caracteres criados por eles, como Garamond, Caslon, Baskerville ou Bodoni, o nome de Griffo foi logo e por longo tempo esquecido, ofuscado pela fama de Manúcio, para quem produziu boa parte de seus tipos. Seu aclamado Bembo, por exemplo, leva o nome do autor da obra para o qual foi concebido, De Aetna de Pietro Bembo (1496).  ¶  Quanto ao caractere criado para as Obras de Virgílio, rapidamente reproduzido e imitado por toda a Europa, ficou conhecido como aldino, antes de se fixar universalmente como itálico.  ¶  A língua portuguesa é a única — até onde sei — que preserva a memória de seu criador através dos termos grifo, ou grifar.

© Dorothée de Bruchard
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