Notas esparsas sobre a história do livro

Dorothée de Bruchard

Cena de feira, ilustrada em Le Chevalier errant, de Tommaso III di Saluzzo,
c. 1400. (Paris, BnF)

FEIRA DO LIVRO - Surgidas na Idade Média, época de distâncias difíceis e comunicação precária, as feiras constituíam uma ocasião privilegiada de contatos e encontros, um espaço por excelência de intercâmbio e grandes negócios. Nelas se reuniam pessoas e mercadorias vindas de longe, circulavam histórias de terras distantes, exibiam-se artistas e invenções impensáveis — o mundo ficava mais rico e maior, e não por acaso o termo feira é etimologicamente ligado a feriado, dia de festa. O livro foi se introduzindo nas feiras sobretudo a partir do advento da imprensa, quando a produção de grandes tiragens levou os impressores a buscar expandir seus mercados. Sua presença se fez mais expressiva em algumas delas, particularmente as de Lyon e Frankfurt que, já no século XVI, se tornavam eventos incontornáveis do mundo livreiro-editorial. Impressores e livreiros de toda a Europa, fabricantes de prensas, fundidores de tipos, papeleiros, além de representantes de diferentes ofícios (xilogravadores, tradutores, escritores...) ali se encontravam duas vezes ao ano durante 15 dias, para assuntar, negociar, divulgar produtos e oferecer serviços. Um momento de confraternização e trocas efetivas de que todos saíam lucrando em mais de um sentido.

TEXTO - Se o pensamento é um fio de linha, o narrador é um fiandeiro — mas o verdadeiro contador de histórias, o poeta, é um tecelão. Essa velha abstração, própria das narrativas faladas, foi transformada em um fato novo e visível pelos escribas. Após longa prática, seu trabalho ganhou uma textura tão homogênea e flexível que a página escrita passou a ser chamada de textus (tecido, em latim).

ROBERT BRINGHURST
Elementos de estilo tipográfico.
Trad. André Stolarski. S.P.: Cosac Naify, 2005, p. 32.

O LIVRO ACORRENTADO - A imagem é representativa de uma época em que a leitura era privilégio de poucos e a palavra escrita, o conhecimento, se achavam sob monopólio e controle das instâncias do poder — notadamente da Igreja. Mais prosaicamente, porém, o LIBER CATENATUS tinha origem numa questão de ordem prática:

Desde pelo menos o século V, era costume expor livros no interior das igrejas para contemplação dos fieis. A fim de evitar o roubo ou extravio de um objeto único, precioso, de laboriosa e custosa confecção, eram eles presos à parede, ou ao púlpito, por pesadas correntes. Tal estratégia se estenderia, mais tarde, aos volumes disponíveis para consulta em bibliotecas, sobretudo universitárias.

Jan Davidsz De Heem. Natureza morta com livros, c. 1625.

LIVROS DEMAIS - Expandia-se aceleradamente a indústria editorial no século XVIII, Século das Luzes em que o livro se firmava como veículo essencial de ideias de renovação. Crescia, simultaneamente, certo desconforto diante do imenso volume de obras publicadas — essa inquietação, que se fazia sentir desde muito cedo após o advento da imprensa |ver artigo de Peter Burke|, vinha agora integrar o próprio verbete “Livro” da Encyclopédie de Diderot e d’Alembert, onde se lê:

A prodigiosa quantidade de livros chegou a tal ponto que se tornou impossível, não só ler todos eles, como saber qual o seu número e conhecer todos os títulos. [...] É mais fácil esgotar o oceano que o número fabuloso de livros, mais fácil contar grãos de areia que os volumes existentes. [...] Mas esses livros todos encerram as mesmas ideias, as mesmas descobertas, as mesmas verdades, os mesmos erros. Felizmente, não somos obrigados a ler tudo que é publicado.

(Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Vol. 9. Paris: Briasson, 1765.)
| TEXTO ORIGINAL |

A PROVA DO FOGO - Santo ou herege? Era prática usual na Idade Média, quando se privilegiava o milagre em detrimento do juízo racional, que em casos de divergência a verdade fosse estabelecida por meio da “prova do fogo”.
Em 1207, eclodia na cidade de Fanjeaux, sul da França, um importante debate teológico envolvendo, de um lado, os seguidores do bispo cátaro Guilhabert de Castres, e de outro, os do frade Domingos de Gusmão — especialmente enviado pelo papa Honório III para conter o movimento catarista que então se espalhava em várias regiões da Europa. Tendo esgotado seus argumentos ao cabo de acirradas disputas, cátaros e católicos romanos recorrem então à arbitragem divina. Reza a lenda que, uma vez jogados ao fogo escritos e teses de ambas as partes, os livros cátaros foram consumidos pelas chamas enquanto flutuava milagrosamente no ar a obra de Domingos. Uma história que não deixou de contribuir para a sua posterior canonização...

À esquerda:
La prueba del fuego (Santo Domingo y los albigenses), de Pedro Berruguete (1450-1503). Madri, Museu del Prado.


BIBLIOTECA - O termo bibliothêkêbiblion (papiro, livro) + thêkê (caixa, estojo, depósito), trazido para o latim como bibliotheca — designava genericamente, para os antigos gregos, um espaço reservado aos livros. De início se referia a um estojo usado para proteger os rolos manuscritos, ou a recipientes cilíndricos de metal, madeira ou pedra em que se acomodavam os vários volumes de uma obra, ou um conjunto de obras. |ver “A encadernação”| Com o tempo, passou a indicar o local onde eram depositados esses estojos: um móvel, um cômodo, um edifício especialmente destinado a reunir e guardar uma coleção de livros.

Livro de Horas de Maastricht (Holanda, séc. 14).
British Library, Stowe MS 17, f. 197v.

A MÃO QUE LÊ - Desenhada quer por escribas e iluminadores, quer pelos leitores, a manícula (do latim manicula, mão pequena), essa mãozinha que se vê às margens dos antigos manuscritos e incunábulos, dedo indicando algum ponto do texto, cumpria variadas funções. Servia para ornamentar os textos, num tempo em que a escrita era sagrada e devia necessariamente ser bela; e para orientar a leitura, destacando trechos tidos como mais importantes e facilitando sua memorização. Significava, mais que nada, a interação do leitor com o texto: essas marcas de leitura imortalizadas nas margens, no mais das vezes anônimas, nos falam de como, durante séculos, eram apreendidos os textos e elaborado o conhecimento. Representando a mão que folheia o volume, afaga o texto, percorre a página, a mão que busca, tateia, se detém, e escreve, a manícula figura simbólica e fisicamente, no objeto livro, a presença do leitor. |ver “Manícula, ou A mão que lê”| Uma tradição medieval, continuada pela tipografia após o advento da imprensa e aos poucos esquecida, que permanece na língua em termos como “manchete”, “mão única”, “contramão”...

Acima:
do incunábulo De Duodecim Periculis, de Bernardino de Siena. Antuérpia: Van der Goes, 1487.

FALHA GRÁFICA - As gravuras criadas por John Tenniel para ilustrar Alice in Wonderland (1865) permanecem ainda hoje associadas à obra de Lewis Carroll. Retomadas inúmeras vezes em edições posteriores, frequentemente colorizadas, as ilustrações de Tenniel cristalizaram a imagem de Alice e demais personagens na memória literária e editorial, servindo inclusive de referência a Walt Disney para a criação do desenho animado lançado em 1951. Um fato chama a atenção, na edição original desta obra aclamada até hoje por várias gerações de leitores. Tenniel, talentoso cartunista e ilustrador, conhecido por seu trabalho na revista Punch, mostrou-se francamente insatisfeito com a qualidade da impressão de uma primeira tiragem de dois mil exemplares pela Macmillan, em junho de 1865, e pediu que fosse refeita. Carroll, que o convidara pessoalmente para ilustrar o volume, concordou, mesmo arcando pessoalmente com os custos de nova tiragem por outro impressor. A anedota é reveladora do quanto, em século de Revolução Industrial, as modernizadas gráficas oitocentistas, mesmo aptas a produzir vistosos volumes ornamentados, ainda precisavam ajustar sua prática ao uso dos novos e fascinantes recursos tecnológicos — que não eram, por si só, garantia de qualidade.

EXPLICAR   (do latim ex- (fora) + plicare (dobrar) - O leitor da Antiguidade segurava o volumen com ambas as mãos e, enquanto com a esquerda ia enrolando a parte já lida, com a direita tratava de explicare, desdobrar, desenrolar, desenvolver, expor, mostrar, deixar claro o texto ainda por ler.

À esquerda:
Detalhe de um afresco de Pompeia reproduzido no livro The Care of Books, de J. W. Clark (Cambridge University Press, 1901, p. 28).

Detalhe de uma página da Opera de Virgílio (Veneza: Aldo Manúcio, 1501).

GRIFO - Em 1501, Aldo Manúcio publicava em Veneza o primeiro livro composto com um tipo que causaria um impacto duradouro na composição tipográfica ocidental.  ¶  Mais estreito, levemente inclinado, o novo tipo era obra do grande desenhador, gravador e fundidor de caracteres bolonhês Francesco GRIFFO (1450-1518), cujo romano, aliás, permanece ainda hoje a referência matricial da tipografia no ocidente. À diferença, porém, de outros tipógrafos consagrados (em geral também editores-impressores) que imortalizaram seu nome em caracteres como Garamond, Caslon, Baskerville ou Bodoni, o nome de Griffo foi logo e por muito tempo esquecido, ofuscado pela fama de Manúcio, para quem produziu boa parte de seus tipos. Seu aclamado Bembo, por exemplo, leva o nome do autor da obra para o qual foi concebido, De Aetna de Pietro Bembo (1496).  ¶  Quanto ao caractere criado para as Obras Completas de Virgílio, rapidamente reproduzido e imitado em toda a Europa, ficou conhecido como aldino |ver Dicionário Aulete|, antes de se fixar universalmente como itálico.  ¶  A língua portuguesa — a única, até onde sei — honra a memória de seu criador através dos termos grifo, ou grifar.

© Dorothée de Bruchard  2017.
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