A forma das letras
Maria Ferrand & João Manuel Bicker
Introdução à obra A Forma das Letras
(Lisboa, FBA / Almedina, 2000).
A importância do estudo da forma das letras e das suas componentes parece indiscutível para os profissionais que com elas trabalham: designers, grafistas, calígrafos, impressores, paginadores.
Mas a linguagem tipográfica é tão rica e colorida que nos pareceu interessante ilustrá-la num pequeno livro que não é mais do que um breve dicionário sobre a anatomia das letras.
A generalidade dos termos tipográficos provém do tempo em que as letras eram impressas a partir de caracteres de chumbo. Estes eram primeiro desenhados, depois gravados, fundidos em matrizes para produzir pequenos blocos de chumbo — os tipos móveis — que eram depois compostos, cobertos com uma camada de tinta e pressionados contra uma folha de papel numa prensa, para produzir as páginas
impressas dos livros.
Hoje em dia as letras imprimem-se por meios fotográficos ou electrónicos numa grande variedade de suportes e tamanhos. Com o boom tecnológico do final do milénio, a tecnologia digital, o multimédia, a Internet e os ambientes virtuais, muitas letras não chegam sequer a ser impressas; elas são antes visionadas, projectadas, animadas e coreografadas.
Mas a sua forma prevalece, sustentando um dos aspectos mais curiosos e fascinantes dos caracteres abstractos que constituem o nosso alfabeto: a sua antiguidade.
Um antigo provérbio latino dizia: “A palavra escrita permanece”. Desde muito cedo, esta permanência das letras escritas — e das histórias que relatavam — seduziu os romanos, que as gravaram de forma belíssima e monumental sobre as pedras da sua arquitectura, celebrando vitórias e enaltecendo os heróis do Império. O Império caiu e as letras magníficas permaneceram, confirmando o adágio. Efectivamente, as letras maiúsculas que ainda hoje utilizamos são descendentes directas das capitalis monumentalis romanas. A sua geometria simples resulta da combinação harmoniosa de linhas adaptadas de formas quadrangulares, circulares e triangulares — que eram, de resto, as formas elementares da arquitectura romana. Uma das teorias mais consistentes sobre a origem das serifas (os pequenos traços terminais que rematam as hastes de algumas letras) sustenta que também elas nasceram nas inscrições romanas; o pequeno remate do cinzel em forma de cunha evitava defeitos e fragilidades na terminação das hastes, adornando-as elegantemente. Durante séculos, tipógrafos e mestres impressores redesenharam as serifas, na tradição dos clássicos, como meros elementos decorativos, mas hoje em dia também se lhes atribui uma importante função: a de conferirem um carácter distinto a cada letra e por conseguinte maior legibilidade aos tipos serifados.
E o que dizer das letras minúsculas? A princípio nem nos ocorre a pergunta, tão habituados que estamos a vê-las como a versão menor das maiúsculas. No entanto, um olhar atento bastará para verificar que o desenho da letra a minúscula, aqui representada, nada tem a ver com a sua equivalente maiúscula, A. Do mesmo modo, comparemos: e minúscula/E maiúscula, g/G, m/M, n/N, r/R, etc. De repente damos conta que para a maior parte das letras aprendemos, desde a escola primária, não um mas dois alfabetos de desenho distinto.
Para além das letras capitulares, gravadas na pedra, os romanos utilizavam também uma forma de escrita cursiva, mais rápida (normalmente registada a pincel), um estilo mais informal. Apesar de ser considerada por alguns autores como a origem mais remota do estilo itálico e das nossas minúsculas, o desenho da capitalis rustica, como era chamada, não diferia muito da capitalis monumentalis. Só por volta do séc. IV d. C. apareceram as letras unciais, bastante mais simples e redondas, caracterizadas pelas suas ligaduras e pela extensão vertical de hastes ascendentes e descendentes. Este estilo foi rapidamente adoptado para a escrita e cópia de livros durante toda a Idade Média, tornando-se a escrita própria dos textos cristãos, em oposição aos caracteres romanos dos textos pagãos. Durante vários séculos, toda a Europa viu surgir um sem número de estilos unciais manuscritos, até que por volta do ano 800 d. C., o imperador Carlos Magno (742-814) instituiu um extenso programa de educação e cultura no intuito de unificar a Europa Central e recuperar a aura e a grandeza do Império Romano. O mestre Alcuin de York foi então encarregue de orientar a criação e implementação de um novo estilo de escrita mais claro, distinto e legível — a minúscula carolíngia — que permaneceu como a forma de escrita dominante em toda a Europa até cerca do séc. XII. Nesta época surgiu uma vaga de estilos nacionalistas, como o gótico, que se impuseram até ao aparecimento dos tipos móveis, por volta de 1450.
Já em pleno Renascimento, a minúscula carolíngia foi recuperada e no espírito do revivalismo dos clássicos, o estilo de escrita evoluiu definitivamente para uma combinação de letras minúsculas com as maiúsculas romanas.
De um modo geral, a terminologia tipográfica emprega termos de anatomia, arquitectura e geometria em analogias visuais que quase se auto-definem, mas até hoje nenhuma nomenclatura definitiva foi geralmente aceite para designar as componentes das letras. A maior parte destas definições nasceram da prática dos mestres tipógrafos, nas oficinas de impressão, e são termos familiares que foram passando de geração em geração, com variantes que apenas sublinham o espírito vivo da tipografia.
No entanto, o conceito das letras como conjunto das suas “partes” anatómicas é relativamente recente. Ele foi claramente teorizado e posto em prática por Giambattista Bodoni (1740-1813) e por Firmin Didot (1764-1836) no séc. XVIII. Até aí, os tipógrafos renascentistas redesenhavam os modelos clássicos aspirando descobrir um cânone de proporções platónico que pudesse reger o alfabeto, mas não questionavam a sua unidade formal. Em 1692, Luís XIV patrocinou uma investigação para a idealização do “mais belo tipo”, o Roman du Roi, construído sobre uma grelha ortogonal e sustentado pelo método científico. Embora divorciado da caligrafia e do desenho tradicionais, este procedimento ainda não questionava a unidade da letra.
Só Bodoni e Didot assinalaram uma outra idealização, o alfabeto como sistema de elementos distintos e polarizados: vertical e horizontal, grosso e fino, haste e serifa. O entendimento destes elementos como componentes dissecáveis das letras, abertas à manipulação num código de relações capaz de suportar uma infinidade de variantes, está espelhado no belíssimo desenho dos seus tipos, classificados de “modernos”. Este novo modo de encarar a tipografia foi o salto conceptual que tornou possível toda a produção e experimentação de vanguarda dos séculos XIX e XX.
Texto reproduzido com autorização dos autores e editores.
Imagens: Escritório do Livro