O ex-libris

Dorothée de Bruchard


Prefácio de Ex-Libris - Coleção Livraria Sereia de José Luís Garaldi
(SP: Ateliê Editorial, 2008).

O ex-libris, sabe-se, é aquela etiqueta, colada geralmente nas primeiras folhas de um livro, contendo o nome ou as iniciais do proprietário e podendo, através de uma imagem ou texto, indicar sua profissão, seus gostos, seu ideário, ou até um (nem sempre) discreto lembrete a um eventual surrupiador da obra. O ex-libris do desenhista e caricaturista francês Gus Bofa (1883-1968), por exemplo, indagava sarcástico: “Esse livro pertence a Gus Bofa. / O que está fazendo aqui?”.

Por meio do ex-libris é que os bibliófilos, ou os leitores que prezam os seus livros e se orgulham da sua biblioteca, costumam personalizar cada um dos seus volumes. Daí, justamente, a origem do nome: em latim, ex libris significa “dentre os livros de”, “da biblioteca de”. A expressão — às vezes também se usava ex dono ou ex biblioteca — inscrita no corpo da obra seguida do nome do proprietário, indicava a sua proveniência. Com o tempo, foi se universalizando e sendo incorporada a diversas línguas, já com o hífen, substantivada e denominando a própria etiqueta — mesmo que os ingleses também a chamem de bookplate, os alemães, buchzeichen ou os holandeses, boekmerken.

É difícil determinar a origem exata do ex-libris, embora a necessidade de assinalar a posse do livro seja aparentemente tão antiga quanto o próprio, sendo registrada desde a Antigüidade: o Museu Britânico abriga, junto a uma caixa de papiros de cerca de 1400 a.C., uma plaquinha de cerâmica indicando que pertenceram ao faraó egípcio Amenófis IV. Entretanto, o emprego do ex-libris tal qual o conhecemos se estabeleceu de fato durante o Renascimento, com a difusão do livro tipográfico.

Ex-libris dos reis católicos, Fernando e Isabel
de Espanha (séc. XV).

Desde a Idade Média, é certo, os grandes nobres mandavam pintar o seu brasão, às vezes pelos próprios copistas, nos manuscritos que encomendavam, e as armas do proprietário apareciam iluminadas quer no início do volume, quer inseridas nas iniciais, quer junto do colofon. O ex-libris sempre manteve, aliás, um caráter heráldico, não raro ostentando emblemas, monogramas, divisas, quer de indivíduos, famílias, quer de instituições, cidades, corporações.

Com o surgimento da imprensa, no século XV, e a nova técnica originando alterações significativas no modo de confecção e difusão dos livros, também alterou-se evidentemente o modo de indicar a sua propriedade. Os brasões já não podiam ser pintados diretamente nos manuscritos, os proprietários tinham de assinalar a posse depois da impressão — era comum, por exemplo, escreverem o nome na folha de rosto. Ricos bibliófilos chegaram a utilizar espécies de ex-libris fixos, que eram parte integrante do livro: alguns, gravados ou impressos numa folha à parte, se incorporavam ao volume quando da encadernação — eram os “ex-libris encadernados”; havia também as vinhetas, ou brasões, gravados ou dourados na própria encadernação, na lombada e até nos cortes do livro.

Entretanto, foi se difundindo mais e mais o ex-libris móvel, colado dentro do volume, em geral no verso ou no reto de suas folhas iniciais — guarda, ou rosto. Os mais modestos eram confeccionados pela mesma técnica da tipografia — constituindo as chamadas etiquetas tipográficas, com um texto, às vezes acompanhado de desenho ou marca gráfica, comuns ainda hoje em dia. Mas surgiriam por sua vez os belos ex-libris gravados — obtidos pelas diversas técnicas da gravura, sobretudo da xilogravura ou gravura em metal.

A Alemanha, terra da imprensa e de excelentes gravadores, viu nascer já em meados do século XV, no rastro da invenção de Gutenberg, o ex-libris gravado, produzindo-o em quantidade e com alto valor artístico. Talvez porque contasse com grandes talentos para a sua feitura — Dürer, por exemplo, realizou pelo menos 5 entre 1503 e 1516 — muito antes de a moda se espalhar em outros países. Da Alemanha é que provém, por sinal, um dos ex-libris móveis mais antigos que conhecemos, em livros doados pelo monge Hildebrand Brandenburg, de Biberach, ao monastério cartusiano de Buxheim, por volta de 1480.

À esquerda: ex-libris encontrado nos livros de Hildebrand Brandenburg.
À direita: ex-libris de Johann Wilhelm Kress von Kressenstein, vereador de Nuremberg († c. 1657).

Também da Alemanha, e dessa época, datam os maiores de que temos notícia, que seriam os de Kress von Kressenstein (392 x 270 mm) e Pfinzing von Henfenfeld (356 x 248 mm): as dimensões dos ex-libris sendo fatalmente limitadas pelas do livro, os maiores espécimes datam dos séculos XVI e XVIII quando os livros tinham, no geral, formato in-fólio. Atualmente, o tamanho do ex-libris está estabelecido em torno dos 130 mm de altura ou largura — mesmo lembrando as inevitáveis brincadeiras modernas que produziram, por exemplo, o ex-libris de Paul Pfister, gravado com buril por Oswin Volkamer em 1967, medindo 4 x 3 mm.

Com a crescente difusão do livro impresso, a partir do século XVI, e a conseqüente multiplicação dos leitores e das bibliotecas, foi se vulgarizando em toda a Europa o uso do ex-libris, antes restrito a ricos bibliófilos e instituições, atraindo desse modo o interesse de vários artistas. Assim, embora permanecessem, até hoje, algumas marcas mais rústicas de posse (manuscrita, ou carimbos e selos), o ex-libris foi paulatinamente, para além da funcionalidade, agregando um valor estético: difundia-se mais e mais o ex-libris artístico.

Sua feitura passa a ser vista como um ramo da arte, espaço privilegiado da gravura em suas diversas técnicas. Tanto que se adotou para o ex-libris os mesmos critérios de medida e descrição utilizados na iconografia (suas dimensões sempre são dadas em milímetros, e eles são descritos primeiro pela altura, depois pela largura). O seu valor passa a ser avaliado de acordo com o renome e talento de quem o desenhou, gravou, imprimiu, com a composição e a harmonia cromática, com a qualidade do papel. E, como toda obra de arte, o ex-libris irá refletir uma época e suas circunstâncias, seus gostos e tendências, acompanhando as grandes mudanças sociais e culturais, adaptando-se a novas técnicas. Sua idade de ouro foi o século XVIII, sobretudo na França, quando se produziram, pelas mãos de grandes artistas, obras admiráveis, de fino acabamento, em água-forte, buril e xilogravura. Os grandes e pequenos senhores, as damas e princesas, todos tinham o seu ex-libris que, para além dos brasões e escudos, já procurava, não raro numa verdadeira profusão de laços, louros, tochas carregadas por amores, pombos e cestos floridos, retratar as predileções do dono, como assuntos históricos, poéticos, ou alegorias.

Ex-libris da biblioteca dos irmãos Edmond e Jules de
Goncourt, gravado pelo ilustrador Gavarni (1804 - 1866).

O ex-libris sobreviveria à Revolução Francesa, adquirindo inclusive novo vigor quando as bibliotecas foram trocando de dono, passando das mãos da aristocracia para as da burguesia. A partir do século XIX, passa a ser bastante utilizado por bibliófilos de profissões liberais e, além dos gostos pessoais do proprietário, reproduz marcas do seu ofício e outros emblemas de significado ideológico ou afetivo: um cantinho de biblioteca, por exemplo (sobretudo entre os livreiros, professores), acompanhado de textos impressos (preferencialmente, naquele tempo, em tipos baskerville, elzevier e bodoni). É quando surge igualmente a moda das charadas e jogos de palavras, em geral envolvendo o nome ou profissão do dono. Datam aliás desse período algumas classificações que ainda hoje vigoram entre os ex-libristas, para distingui-lo de acordo com seus temas: heráldicos, paisagísticos, simbólicos, eclesiásticos, eróticos, humorísticos, etc.

Pois, pelo final do século XIX o ex-libris deixa de ser apenas um objeto funcional, de interesse pessoal, com qualidades artísticas, e adquire valor e significado em si: torna-se objeto de estudo e de desejo, objeto de coleção. Aparecem os amadores, os especialistas, escrevem-se obras a respeito, estabelecem-se regras, criam-se clubes e associações de ex-librismo na Inglaterra, Alemanha e França. Essa febre acontecia justamente no momento em que as técnicas tipográficas se modernizavam, industrializando-se, e os ex-libris em sua maioria passavam a ser impressos. Ao mesmo tempo em que era melhor compreendido e apreciado, acrescentando inclusive valor comercial ao livro, o ex-libris começa a perder do seu prestígio por conta da banalização: para alimentar as coleções, por modismo, e graças à crescente automação das técnicas gráficas, passaram a proliferar ex-libris fabricados em série, deteriorando-lhes o valor e interesse. Subsistem contudo, mundo afora, diversas associações dedicadas ao estudo e colecionismo desse pequeno objeto que ainda apaixona especialistas e leigos pelo inegável prazer estético que proporciona e pelo tanto de subsídios que oferece para o estudo da história, da gravura, dos costumes, da bibliografia, da heráldica — a história do ex-libris integra, de fato, tanto a história da arte como a história do livro, sendo inesgotável fonte de interesse para ambas.

Só no final do século XVIII é que ele começa a disseminar-se em terras brasileiras. O primeiro de que se tem notícia teria pertencido a Manoel de Abreu Guimarães, de Sabará, Minas Gerais, possivelmente comerciante já que representa uma lira, numa alusão às artes, à indústria e ao comércio. Vários homens públicos e de letras tiveram o seu — como Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Barão Homem de Melo... — enquanto que o nosso primeiro colecionador teria sido o Barão do Rio Branco (1845-1912). No entanto, foi esmorecendo o ex-librismo entre nós durante o século XX, praticamente desaparecendo por volta dos anos 1960 embora ainda conte com uns poucos artistas e apreciadores: cabe mencionar Jorge Oliveira, residente em Caçador, Santa Catarina, um dos seus derradeiros criadores em atividade no Brasil, e o esforço de algumas bibliotecas para adquirir e preservar coleções — notadamente a Biblioteca Central da Universidade de Brasília e a Biblioteca Pública do Paraná.

O presente volume, o quarto de uma coleção dedicada às artes do livro, nos enche os olhos com uma seleção de ex-libris pertencentes a José Luís Garaldi, dono do Sebo Sereia, em São Paulo. Foram escolhidos de acordo com três critérios principais: os mais antigos (do período imperial, onde não aparece a palavra ex-libris); os que pertenceram a personalidades brasileiras, sobretudo políticas e literárias do século XX; e, finalmente, alguns que se sobressaem por alguma curiosidade do dístico ou do desenho. Tem, cada um deles, muita história para contar — belas histórias de arte, de vida e de amor aos livros.

© | Dorothée de Bruchard | 2008
Imagens: Escritório do Livro


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