Manícula, ou A mão que lê
Breve nota histórica
Dorothée de Bruchard
Manícula é aquela mãozinha que se vê às margens de alguns manuscritos medievais ou antigos livros impressos, indicando com o dedo algum ponto do texto. Em geral representada com parte do braço ou da roupa (o que também nos permite acompanhar as variações da moda ao fio dos séculos), não raro integra igualmente outras partes do corpo, ou o corpo inteiro, e até o corpo de um animal. Ricamente elaborada ou apenas rabiscada, realística ou fantástica, engraçada, bizarra, sofisticada ou mal-humorada, às vezes meio obscena, encanta inevitavelmente os estudiosos da arte e das artes do livro, além de ter na manga mais de uma história para contar sobre a longa trajetória do livro e da leitura.
Do latim manicula (mão pequena), chama-se em francês manicule, em inglês, manicule ou manicula, em espanhol, manícula, em italiano manicula.
Mas se a chamo de manícula é por simples dedução, e porque é preciso um nome para poder pensar e falar nela — aparentemente inexiste em português um termo para designá-la.
Não consta em dicionários como Aurélio ou Aulete, e nem o dr. Google oferece qualquer pista consistente |1|. Sem outra alternativa, arrisco então o termo manícula — ao menos provisoriamente, até que consulta a obras especializadas venha eventualmente preencher essa lacuna linguística.
Desenhada quer por escribas e iluminadores, quer pelos leitores, a manícula medieval cumpria variadas funções. Decorativa, sem dúvida, uma vez que toda escrita era então sagrada e a palavra registrada em livro devia necessariamente ser bela. Mas em época de caligrafia apertada, intrincada por abreviações e contrações, sem pontuação, e com indicações de estrutura textual em forma gráfico-pictórica — letras capitulares, sinais de parágrafo coloridos, ilustrações etc. —, servia principalmente para orientar a leitura. Enquanto destacava no texto trechos considerados mais dignos de atenção, facilitava a sua memorização, além de permitir que fossem mais prontamente localizados em posteriores leituras. Uma sequência de manículas balizando a obra chegava às vezes a constituir uma espécie de sumário.
A manícula mal humorada, à esquerda, se encontra no f. 5r do MS Hunter 369 - Glasgow, University Library. Ao centro, detalhe do fólio 115v das Decretais do papa Gregório IX (Veneza, c. 1260-80). Bibliothèque d'Avranches, | MS 050 |. À direita, detalhe do célebre Livro de Horas de Maastricht (Holanda, início do séc. XIV). Biblioteca Britânica. Stowe MS 17, f. 193r. | EDIÇÃO FAC-SIMILAR |.
A manícula servia igualmente para assinalar breves anotações do leitor, que iam desde indicar, numa partitura musical, uma passagem a ser abordada com especial cuidado, até observações, remissões a outros pontos da obra, ou referências a outras obras e autores. Também era útil para paliar um eventual lapso do copista: uma palavra ou frase faltante, por exemplo, era então anotada na margem, enquanto o dedo apontado indicava seu exato lugar no texto...
À esquerda, fólio 132r do manuscrito Decretales Gregorii IX, França, c. 1285. Philadelphia, University of Pennsylvania, Rare Book & Manuscript Library (Ms. Codex 1059). Ao centro, Antiphonarium and breviarium, Itália, séc. XV. Thomas Fisher Rare Book Library, University of Toronto. À direita, f. 33v de Medical and astrological miscellany, de Heinrich Stegmüller. (Buchau, Alemanha, 1443). Penn Libraries Manuscripts, Ms LJS 463. | EDIÇÃO FAC-SIMILAR |.
À esquerda, detalhe de Sentencies de Petrus Lombardus (séc. XIII) | BM. sm. Troyes, 145 f. 060 v. |. À direita, a personagem intervém no texto fazendo um gesto de discussão que às vezes então se usava durante as argumentações. Detalhe de um exemplar do Decreto de Graciano. Bibliothèque municipale d'Autun, França, Ms 80 (S99), fol. 38R (final do século XIII).
A primeira manícula de que se tem notícia é encontrada num exemplar de 1086 do Domesday Book, registro do censo realizado na Inglaterra por ordem de Guilherme I. Só a partir do século XII, porém, torna-se presença frequente nos manuscritos, o que não será mero acaso: por esta época é que tinha início, com a criação das universidades, notadamente (entre outros fatores), o lento processo de dessacralização da escrita que, três séculos mais tarde, culminaria no advento da imprensa. É quando o livro, até então prerrogativa da religião e do poder, começava a se espraiar dos mosteiros para o mundo profano. De objeto sagrado a encarnar a Palavra divina, tornava-se chave de acesso ao conhecimento, passando a abrigar, inclusive, as primeiras manifestações literárias, feitas de histórias e lendas populares trazidas da tradição oral.
E o leitor começava, paulatinamente, a assumir o lugar central que lhe caberia na história do livro.
Páginas de um manuscrito (c. 1301-1350) do Roman de Renart, coletânea de histórias escritas em francês por diversos autores, alguns até hoje anônimos. Protagonizadas por animais, essas narrativas, extremamente populares em toda a Europa, se atreviam a uma maliciosa crítica social e anticlerical.
Paris, Bibliothèque nationale de France, MS 12584. F. 61r (vue 127) e detalhe do f. 63v (vue 132) | EDIÇÃO FAC-SIMILAR |
As páginas dos manuscritos dão testemunho, a partir da Alta Idade Média, da emergência de um leitor-sujeito, apto a fazer de um texto que se apresenta em suas múltiplas verdades e sentidos uma leitura pessoal e singular. Um leitor que, não mais ouvinte passivo de uma voz divina a transmitir a verdade única e imutável, apropria-se do texto e o torna seu.
E faz isso a partir de suas margens. Nelas é que deixa simbolicamente sua marca, em forma de observações, desenhos, anotações — autênticos gestos de leitura que nos dizem de que forma ele apreendia o texto e elaborava seus sentidos.
Gestos que falam também de sua interação com a obra, do diálogo que estabelecia assim com outros leitores e, em última instância, com o autor — verdadeiro sinal dos tempos, numa época em que autores eram remotas figuras míticas, de autoridade inconteste cristalizada pelos séculos...
Ao lado, página de uma cópia manuscrita de Libri naturales, de Aristóteles, na qual convivem, à margem do texto, glosas, comentários e anotações do leitor. Observe-se a manícula ao final da 2ª coluna à esquerda.
Acima, detalhe do mesmo fólio. A forma da mão, cujo dedo aponta para uma anotação interlinear, se confunde com a de um cãozinho — o qual dá toda impressão de estar explicando Aristóteles ao coelho...
Londres, British Library, | ms Harley 3487, f.186v | final séc. XIII.
| EDIÇÃO FAC-SIMILAR |
A marginália dos manuscritos medievais constitui assim um precioso registro da relação que se tinha então com o saber, com a palavra escrita, com o livro enquanto objeto, e das práticas de leitura no processo aprendizado. Mais que isso, demonstra visualmente este princípio sabido e não desmentido passado quase um milênio: escrever é gesto integrante, inerente ao ato de leitura. Todo leitor anota, rabisca, assinala, copia, resume, ilustra, esquematiza — e isso, sempre que possível, nas margens do texto. O leitor escreve para melhor apreender, elaborar, questionar, se impregnar daquilo que lê.
Detalhe de Codicis Justiniani libri cum glossa (séc. XI). Montpellier, França, Bibliothèque universitaire de médecine, ms. H.82, fol. 12. |
Detalhe de um manuscrito sobre ciências naturais, filosofia e matemática. O leitor deu aqui à manícula um corpo de dragão. Londres, British Library | Royal MS 12 E.xxv | c. 1300. |
As marcas de leitura imortalizadas nas margens, no mais das vezes anônimas, não deixam de representar visualmente, no objeto livro, a presença do leitor. Simbólica e fisicamente. E se a manícula é a marca mais recorrente na marginália dos antigos manuscritos e incunábulos, a que revela maior diversidade criativa, é talvez por ser a mão aquela parte do corpo que interage palpavelmente com a obra: a mão que folheia o volume, afaga o texto, percorre a página, a mão que busca, tateia, se detém, e escreve. A mão que lê.
À esquerda, detalhe de um manuscrito de Liber Ethicorum, de Aristóteles. Norte da Itália, séc. XIII. Paris, BnF, Lat. 6306, f.75v. | EDIÇÃO FAC-SIMILAR |. No centro, a mão que apanha o peixe reforça a ideia, neste trecho de A Myrour to lewde men and wymmen que reescreve o Eclesiastes 9, 12 (anônimo, Inglaterra, início do séc. XV), de que assim como o peixe é apanhado pelo pescador, também o homem pode ser apanhado pela luxúria. Penn Libraries, Ms. Codex 198, f.95r. | EDIÇÃO FAC-SIMILAR | À direita, detalhe de Summa Aurea, de Henricus de Segusia, 1312. Bibliothèque municipale d’Amiens, | Ms. 0361 |, f. 413.
À esquerda, detalhe de um manuscrito de Paradoxa stoicorum, de Cícero. Berkeley, Bancroft Library, | BANC MS UCB 85 |, fol. 5v. À direita, detalhes de Les cinq livres des décrétales translatées en françois du temps de S. Louis, século XIV. Montpellier, Bibliothèque interuniversitaire, section Médecine, ms . H. 51, f. 090 e f. 138.
Ao lado: duas figuras indicam diferentes momentos do texto numa página de Anonymi chronicon a mundi creatione ad annum 1220..., manuscrito do século XIV. Paris, Bibliothèque nationale de France, Département des manuscrits, lat. MS 4935 folio 19v (vue 48). | EDIÇÃO FAC-SIMILAR | Acima, à esquerda, The John Rylands Library, University of Manchester, Medieval Collection, Latin M.S. 155, fol. 70r. À direita, detalhe de Recueil: Porphyrius/Aristoteles/Boethius, Inglaterra, séc. XIII-XIV. Bibliothèque municipale de Chambéry, França, ms. 0027, f. 209v.
Giovanni Boccaccio (1313-1375) possuía um sistema próprio para anotar seus livros, incluindo diferentes modelos de manículas com que costumava realçar um ou outro trecho da obra em vista de subsequentes leituras. Mas suas manículas também serviam para outros fins...
À direita, manícula e ornamentos desenhados por Boccaccio, num texto caligrafado por ele.
À esquerda: num manuscrito autógrafo de Marcos Valério Marcial (40-104), Boccaccio brinda o poeta latino com uma figa, dita “figa dantesca” (fiche dantesche) em referência ao gesto obsceno e ofensivo feito pela personagem Vanni Fucci no canto XXV da Divina Comédia (Inferno).
A mão tipográfica
Com o advento do livro impresso, a manícula foi incorporada pelos primeiros tipógrafos, assim como outros elementos da tradição manuscrita — letras capitulares, e símbolos como ¶ ou &, por exemplo. Padronizou-se sua forma, contudo, e normatizou-se o seu uso. Surgia a mão tipográfica, com a função mais restrita de, destacando um ponto específico do texto, introduzir na margem uma nota ou referência remissiva a outros autores ou obras. Uma mudança que não deixa de espelhar a transição de um modo de leitura intensiva, mais aprofundada e reflexiva, para um modo extensivo, numa época em que, pela prensa móvel, multiplicavam-se exponencialmente os textos a serem lidos e se acelerava o ritmo da leitura.
Mão tipográfica no Breviarium historiæ Romanæ de Eutrópio. Paris, 1513. Bibliothèque municipale de Lyon, Rés 104638, f. 10v. |
Detalhe de Opus regale, de Joan Vivaldo. Impresso em Lyon, França, por Steph. Guyenard, 1508. Univ. of Amsterdam, OTM: 973 f. 31. |
A mão tipográfica, convencionalmente arrematada por um punho de camisa, entrou para a língua francesa como manchette (punho de camisa, do latim manica, que deu “manga" em português). Por extensão, o termo passou a designar as próprias notas ou referências assim indicadas à margem do texto e, mais tarde, derivando para o jargão jornalístico, o título em destaque de um jornal diário — daí a origem, importada, da nossa “manchete”.
A diversidade e a criatividade das antigas manículas, no entanto, não desapareceram das páginas do livro impresso com a padronização da mão tipográfica. Perpetuaram-se século XVIII adentro pela mão dos leitores, testemunhas pictóricas da sua assimilação e apropriação dos textos. Até que, em épocas mais apressadas, o vagar do desenho deixou de caber no tempo da leitura.
À esquerda, páginas de Quadragesimale de floribus sapientiæ, de Ambrosius de Spiera, impresso em Veneza pelo alemão Wendelin von Speyer, 1476. À direita, detalhe da edição da Divina Comédia de Dante organizada por Cristoforo Landino. Florença, 1481. John Rylands Library. 17280, f. 162v.
A mão tipográfica foi aos poucos caindo em desuso, à medida que notas e referências passavam a ser numeradas e remetidas ao pé da página na prática editorial. No século XIX, convertida num signo genérico, indicativo de direção, era afinal absorvida pela incipiente indústria publicitária para uso em folhetos, cartazes, letreiros... Deixava de ser complemento do texto para se tornar texto em si.
Chegou, numa época, a ser usada em placas de trânsito que indicavam, nas ruas, o sentido de circulação dos veículos — o que explica a origem de expressões como “mão única”, “mão dupla”, “contramão”, “fora de mão”... |2|
Em 1933, era resgatada pelo tipógrafo americano Bruce Rogers em seu projeto das Æsop’s Fable, em que uma manícula com manga de Arlequim servia de indicador em diversos momentos do livro.
Ressurgida nos meios virtuais e se adequando às suas distintas possibilidades, a moderna versão da manícula não se integra mais ao texto nem destaca, por diferentes ângulos, um ou outro de seus sentidos. Reinventou-se em nova função: dedo invariavelmente apontado para cima, move-se sobre o texto indicando algo atrás, além dele — e conduz o leitor pelos caminhos do hipertexto.
Verdade é que, em meio a tão céleres e radicais transformações nos modos de transmissão da palavra escrita, parece já estar com os dias contados: não é vista nos mais recentes suportes eletrônicos, tablets, e-readers e outros dispositivos táteis, nos quais a própria interação com a mão do leitor tende em breve a ser substituída por comandos vocais. Mas, nesse início de milênio que associa o ler ao navegar, essa pálida remanescente da mão que lê ainda nos recorda um tempo em que ler era manusear a obra, e nos remete a uma milenar tradição que incorporava, ao ato da leitura, o traço à toa da mão que pensa, devaneia, rabisca, reflete e recria enquanto desvenda os meandros de um texto.
NOTAS
| 1 |
O Dicionário de artes gráficas de Frederico Porta informa, no verbete Mão: sinal tipográfico representado por uma mão com o indicador teso, usado algumas vezes para chamar a atenção do leitor sobre um determinado trecho. Também se diz Indicador. O verbete, porém, e infelizmente, refere tão somente o moderno “sinal tipográfico” surgido com o advento da imprensa.
¶ Sua origem manuscrita é vagamente aludida no dicionário Houaiss, em Índice (ou índex): sinal tipográfico que remonta à tradição medieval, us. como remissivo ou lembrete, chamando a atenção para outros pontos da obra.
¶ Ensina o mesmo Houaiss, porém, curiosa ou contraditoriamente, no capítulo “Signos tipográficos-bibliológicos” de seu Elementos de bibliologia: Indicador ou índice (índex): só na tradição tipográfica, relativamente moderno, usado como remissivo ou lembrete para chamar especial atenção para lugares outros da obra em que se trate mais amplamente da matéria. Nem vestígio do signo manuscrito ou da tradição medieval.
| 2 |
Devo a Cláudio Moreno essa preciosa informação encontrada em |Contramão|, artigo originalmente publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 18/01/2014.
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Para além de informações esparsas pinçadas em diferentes histórias do livro, aprendi muito sobre a manícula com:
¶ Bialkowski, Voytek; DeLuca, Christine; Lafreniere, Kalina.
|Manicules|. No site Archbook, da Universidade de Toronto. 01/02/2012.
¶ Sherman, W. H. |Toward a history of the manicule|. In: Sherman W. H. Used Books: Marking Readers in Renaissance England. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2008, p. 25-52.
¶ |De l’annotation aux marginalia| e
|Les manchettes dans le livre imprimé|
In: |Le livre : de l’Antiquité à la Renaissance. Cours en deux parties : l’objet et l’usage|, um projeto dos pesquisadores Béatrice Bakhouche, Béatrice Beys, Daniel Delattre, Charles Guérin e Trung Tran. Université Paul Valéry, Montpellier 3 (França).
© | Dorothée de Bruchard | 2017
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