.
A Escrita, espelho dos homens e das sociedades
Ladislas Mandel
Tradução de Dorothée de Bruchard
Introdução a Ecritures, miroir des hommes et des sociétés
(Atelier Perrousseaux éditeur, 1998). Publicado no Brasil em 2006 pela Edições Rosari,
sob o título Escritas - espelho dos homens e das sociedades, tradução de Constância Egrejas.
Desde as idades mais remotas, diversos sistemas de registro do pensamento, abstratos ou figurativos, antecederam aquilo que chamamos de “escrita”. A invenção do sistema alfabético pelos povos do Meio-Oriente, cerca de 1.200 anos antes de J. C., foi uma etapa decisiva na história da humanidade. Ao decompor a linguagem falada num determinado número de símbolos fônicos (ou letras), o alfabeto permitiu que se registrassem com uma mesma escrita todas as línguas daquela região, estabelecendo assim vínculos muito fortes de comunicação entre os povos. O alfabeto pode, dessa forma, ser considerado o primeiro ato de um certo humanismo mediterrâneo, nascimento e fundamento da nossa cultura e das nossas sociedades modernas.
Assistimos muito rapidamente a uma extraordinária proliferação de escritas alfabéticas derivadas desse sistema, tanto no Oriente como no Ocidente. A explosão do alfabeto fenício, que por vocação poderia ter se destinado a um uso mais universal, em uma variedade infinita de formas escriturais alfabéticas, disseminadas mundo afora (a começar pelo alfabeto grego), sugere-nos algumas interrogações.
A que misteriosos chamados obedeceram esses povos para se embrenharem nas sendas, não menos misteriosas e divergentes, das escritas? A criação das formas escriturais é matéria do espírito (una cosa mentale) e não poderia ser explicada pelo acaso ou pelos instrumentos de traçado que, afinal, não passam de prolongamentos das nossas mãos escolhidos por nós para melhor traduzir nosso pensamento.
A história da nossa escrita tem sido, nos últimos 2.000 anos, a animação das capitais monumentais romanas (formas geométricas construídas e estáticas) por meio de uma gestualidade dinâmica da mão, adaptada às diferentes funções que a sociedade ia lhe atribuindo.
Na gestualidade de sua escrita pessoal, o scriptor, mediante um total investimento corporal e espiritual, deixa a marca de sua personalidade e de sua inserção em uma cultura. Em outro nível, o da comunicação social, com forma mais elaborada, lapidar ou livresca, destinada a um público mais amplo, e na medida em que uma sociedade nela se reconhece e a adota, a escrita se torna a escrita daquela sociedade e reflete a imagem de uma certa identidade cultural.
Antes da produção dos caracteres em escala industrial, cada cultura possuía a “sua” escrita, da mesma forma como possuía a sua língua, sedimentada em determinadas realidades que lhe eram próprias e não intercambiáveis.
Em todo o decorrer da história, não estavam errados os conquistadores que, após cada conquista, começavam por destituir os povos submetidos de sua língua e de sua escrita, impondo aquelas do vencedor. Foi assim com todos os poderes fortes, fossem eles civis, militares ou religiosos; quer se tratasse dos gregos, dos romanos, de Carlos Magno, do Islã, dos cristãos (ortodoxos, católicos e protestantes, os quais se diferenciam por três escritas distintas) ou de todos os colonizadores.
Assim, a primeira reivindicação de um povo que quer recobrar sua liberdade é o uso de sua língua e de sua escrita, sinais primeiros de sua identidade, símbolos de sua liberdade.
Depois da desagregação do império de Carlos Magno o qual, para unificar o pensamento do Ocidente cristão, impôs a todo o Império o latim e a “minúscula carolíngea”, duas grandes correntes de pensamento dividiram a Europa. Ao norte, em meio a uma natureza hostil, o pensamento escolástico de ordem e rigor encontrou seu reflexo fiel na escrita gótica vertical, pesada e assertiva, enquanto que na região do Mediterrâneo, de natureza mais acolhedora, o pensamento humanístico de tolerância se expressa numa escrita redonda e gentil de que nossas sociedades ocidentais são herdeiras diretas.
Em todos os tempos a escrita, nunca gratuita, respondeu a funções materiais ou espirituais no âmbito de cada cultura. Refletia assim, em suas metáforas, tanto a imagem da sociedade em sua evolução dinâmica quanto o papel específico que lhe era atribuído.
Assistimos, hoje em dia, a uma proliferação sem precedentes de escritas que não possuem o menor vínculo com nenhuma cultura, nem com nenhuma função específica do escrito, o que reflete bastante bem a imensa confusão em que se encontra o mundo moderno. Mais uma vez, duas grandes correntes de pensamento parecem dividir o mundo:
1. Uma corrente, de pretensão “universal”, surgida no início do século para atender a uma preocupação da indústria globalizante, detentora do verdadeiro poder mundial e que busca, num mercado sem fronteiras, uniformizar tanto seus próprios produtos como o pensamento do homem, propondo símbolos de felicidade comuns a todos os consumidores potenciais do planeta.
Para tanto, essa corrente criou uma linguagem publicitária feita, por trás da máscara de pseudoneutralidade gráfica, de imagens sugestivas e de uma escrita construída, congelada, que apaga qualquer vestígio gestual passível de evocar particularidades culturais — essa escrita despida e sem alma que são as letras Lineais ou sem serifa.
2. De outro lado, uma corrente de pensamento mais fiel à nossa herança cultural, dedicada a preservar e prolongar, em sua diversidade identitária, o ideal humanista que continua sendo o modelo cultural das nossas sociedades ocidentais. As escritas humanísticas, herdadas do Renascimento, reflexos daquele pensamento de tolerância, permanecem ainda hoje, não obstante a pressão das Lineais impessoais e tentaculares, a expressão escritural incontornável de toda a produção livresca do mundo ocidental.
As novas tecnologias da informática, que cobrem boa parte do campo da escrita, longe de conseguirem impor ao mundo uma escrita “neutra” e universal, dividem-se judiciosamente entre as escritas pseudoneutralistas, cada vez mais relegadas às áreas econômicas e informáticas, e as escritas que respeitam as tradições culturais específicas — o que reflete perfeitamente a relação de forças dentro do pensamento dilacerado de nossa civilização.
LADISLAS MANDEL (1921-2006),
artista e desenhador tipográfico húngaro radicado na França,
também autor de Du Pouvoir de l'écriture (2004).
© tradução | Dorothée de Bruchard | 2004.
Reprodução proibida
Imagens: Escritório do Livro