.

A Escrita, espelho dos homens e das sociedades

Ladislas Mandel

Tradução de Dorothée de Bruchard


Introdução a Ecritures, miroir des hommes et des sociétés
(Atelier Perrousseaux éditeur, 1998). Publicado no Brasil em 2006 pela Edições Rosari,
sob o título Escritas - espelho dos homens e das sociedades, tradução de Constância Egrejas.

Ilustração de “L'art d'écrire”, Encyclopédie méthodique,
de Paillasson et Aubert (1783).

Desde as idades mais remotas, diversos sistemas de registro do pensamento, abstratos ou figurativos, antecederam aquilo que chamamos de “escrita”. A invenção do sistema alfabético pelos povos do Meio-Oriente, cerca de 1.200 anos antes de J. C., foi uma etapa decisiva na história da humanidade. Ao decompor a linguagem falada num determinado número de símbolos fônicos (ou letras), o alfabeto permitiu que se registrassem com uma mesma escrita todas as línguas daquela região, estabelecendo assim vínculos muito fortes de comunicação entre os povos. O alfabeto pode, dessa forma, ser considerado o primeiro ato de um certo humanismo mediterrâneo, nascimento e fundamento da nossa cultura e das nossas sociedades modernas.

Assistimos muito rapidamente a uma extraordinária proliferação de escritas alfabéticas derivadas desse sistema, tanto no Oriente como no Ocidente. A explosão do alfabeto fenício, que por vocação poderia ter se destinado a um uso mais universal, em uma variedade infinita de formas escriturais alfabéticas, disseminadas mundo afora (a começar pelo alfabeto grego), sugere-nos algumas interrogações.

A que misteriosos chamados obedeceram esses povos para se embrenharem nas sendas, não menos misteriosas e divergentes, das escritas? A criação das formas escriturais é matéria do espírito (una cosa mentale) e não poderia ser explicada pelo acaso ou pelos instrumentos de traçado que, afinal, não passam de prolongamentos das nossas mãos escolhidos por nós para melhor traduzir nosso pensamento.

A história da nossa escrita tem sido, nos últimos 2.000 anos, a animação das capitais monumentais romanas (formas geométricas construídas e estáticas) por meio de uma gestualidade dinâmica da mão, adaptada às diferentes funções que a sociedade ia lhe atribuindo.

Na gestualidade de sua escrita pessoal, o scriptor, mediante um total investimento corporal e espiritual, deixa a marca de sua personalidade e de sua inserção em uma cultura. Em outro nível, o da comunicação social, com forma mais elaborada, lapidar ou livresca, destinada a um público mais amplo, e na medida em que uma sociedade nela se reconhece e a adota, a escrita se torna a escrita daquela sociedade e reflete a imagem de uma certa identidade cultural.

Antes da produção dos caracteres em escala industrial, cada cultura possuía a “sua” escrita, da mesma forma como possuía a sua língua, sedimentada em determinadas realidades que lhe eram próprias e não intercambiáveis.

Em todo o decorrer da história, não estavam errados os conquistadores que, após cada conquista, começavam por destituir os povos submetidos de sua língua e de sua escrita, impondo aquelas do vencedor. Foi assim com todos os poderes fortes, fossem eles civis, militares ou religiosos; quer se tratasse dos gregos, dos romanos, de Carlos Magno, do Islã, dos cristãos (ortodoxos, católicos e protestantes, os quais se diferenciam por três escritas distintas) ou de todos os colonizadores.

Assim, a primeira reivindicação de um povo que quer recobrar sua liberdade é o uso de sua língua e de sua escrita, sinais primeiros de sua identidade, símbolos de sua liberdade.

Depois da desagregação do império de Carlos Magno o qual, para unificar o pensamento do Ocidente cristão, impôs a todo o Império o latim e a “minúscula carolíngea”, duas grandes correntes de pensamento dividiram a Europa. Ao norte, em meio a uma natureza hostil, o pensamento escolástico de ordem e rigor encontrou seu reflexo fiel na escrita gótica vertical, pesada e assertiva, enquanto que na região do Mediterrâneo, de natureza mais acolhedora, o pensamento humanístico de tolerância se expressa numa escrita redonda e gentil de que nossas sociedades ocidentais são herdeiras diretas.

Em todos os tempos a escrita, nunca gratuita, respondeu a funções materiais ou espirituais no âmbito de cada cultura. Refletia assim, em suas metáforas, tanto a imagem da sociedade em sua evolução dinâmica quanto o papel específico que lhe era atribuído.

Assistimos, hoje em dia, a uma proliferação sem precedentes de escritas que não possuem o menor vínculo com nenhuma cultura, nem com nenhuma função específica do escrito, o que reflete bastante bem a imensa confusão em que se encontra o mundo moderno. Mais uma vez, duas grandes correntes de pensamento parecem dividir o mundo:

1. Uma corrente, de pretensão “universal”, surgida no início do século para atender a uma preocupação da indústria globalizante, detentora do verdadeiro poder mundial e que busca, num mercado sem fronteiras, uniformizar tanto seus próprios produtos como o pensamento do homem, propondo símbolos de felicidade comuns a todos os consumidores potenciais do planeta.

Para tanto, essa corrente criou uma linguagem publicitária feita, por trás da máscara de pseudoneutralidade gráfica, de imagens sugestivas e de uma escrita construída, congelada, que apaga qualquer vestígio gestual passível de evocar particularidades culturais — essa escrita despida e sem alma que são as letras Lineais ou sem serifa.

2. De outro lado, uma corrente de pensamento mais fiel à nossa herança cultural, dedicada a preservar e prolongar, em sua diversidade identitária, o ideal humanista que continua sendo o modelo cultural das nossas sociedades ocidentais. As escritas humanísticas, herdadas do Renascimento, reflexos daquele pensamento de tolerância, permanecem ainda hoje, não obstante a pressão das Lineais impessoais e tentaculares, a expressão escritural incontornável de toda a produção livresca do mundo ocidental.

As novas tecnologias da informática, que cobrem boa parte do campo da escrita, longe de conseguirem impor ao mundo uma escrita “neutra” e universal, dividem-se judiciosamente entre as escritas pseudoneutralistas, cada vez mais relegadas às áreas econômicas e informáticas, e as escritas que respeitam as tradições culturais específicas — o que reflete perfeitamente a relação de forças dentro do pensamento dilacerado de nossa civilização.

LADISLAS MANDEL (1921-2006),
artista e desenhador tipográfico húngaro radicado na França,
também autor de Du Pouvoir de l'écriture (2004).

© tradução | Dorothée de Bruchard | 2004.
Reprodução proibida
Imagens: Escritório do Livro


| VOLTA PARA BIBLIOGRAFIA | Tipografia & Tipógrafos |