Observações sobre a história do livro

Sandra Reimão


Publicado originalmente, com pequenas alterações, em
Livros e televisão - correlações. (São Paulo: Ateliê Editorial, 2004).

I. Faces do livro

Se nos detivermos no livro em sua forma mais difundida hoje em dia, o livro composto de cadernos reunidos, denominado pela palavra latina codex, devemos datar esse objeto como algo surgido em torno do século II ou III de nossa Era. A denominação codex, que significa árvore, madeira, advém do fato de que o livro, no formato de cadernos reunidos, utilizou durante muitos séculos pranchas de madeira como suporte e capas desses cadernos. No formato codex o livro é um objeto que perdura, pois, há cerca de dezoito séculos.

O livro em cadernos veio substituir o livro em rolo, denominado volumen, utilizado pelos egípcios desde por volta de 2.700 a 2.400 a. C. Neste rolo, utilizado horizontalmente girado a partir de uma vara de madeira, escrevia-se na parte interna, dispondo as linhas horizontalmente em colunas [Estivals, Robert (org.). Les sciences de l'écrit. Paris: Retz, 1993, p. 570.]. O volumen difere dos rolos utilizados em documentos na Idade Média, que eram manipulados verticalmente.

As vantagens do livro em cadernos ajuntados em relação ao livro em rolo são óbvias: possibilidade de utilização dos dois lados e, portanto, economia do suporte, que passa a comportar mais texto; mais facilidade de manuseio; facilidade na localização de passagens; possibilidade de estabelecer-se paginação, índices, correspondências e propiciar ao leitor uma visão global do livro que folheia [Chartier, Roger. A ordem dos livros. Brasília: Ed. UnB, 1998, 2a. ed., p. 101-102.].

As comunidades cristãs, na utilização de textos religiosos, adotaram rapidamente a forma codex e utilizaram prontamente suas facilidades em termos de “confrontação dos Evangelhos e (de) mobilização, no final da pregação, do culto ou da oração, de citações da palavra divina” [Chartier, Roger. Idem, p. 102.]. Para textos profanos e comunidades não cristãs foram necessários mais de 300 anos para que esta substituição se realizasse completamente.

Na adoção da forma codex em substituição ao volumen, retenhamos uma importante observação elaborada por Roger Chartier, que visa salientar a força da imagem volumen como lugar da sabedoria e materialização do pensamento: mesmo depois da ampla adoção do formato codex, por muitos séculos ainda não se apagam as antigas representações do livro. O volumen, por muito tempo, representará o livro em moedas, monumentos, pinturas e esculturas [Chartier, Roger. Idem, p. 102.].

Ao longo de sua história, o livro variará enormemente não só em sua forma material, como também nas práticas sociais de aproximação e de seu apossamento, produzindo usos e significações amplamente diferenciados.

Referir-se à diversidade das práticas sociais de aproximação e apossamento, dos usos e significados do livro, é tocar-se no vasto e multifacetado campo das histórias das mentalidades coletivas, no âmbito multideterminado dos gostos, modos, modas e valores de uma época.

Para reforçarmos essa idéia do livro enquanto um suporte da escrita que não só altera a sua forma ao longo da história como também historicamente é passível de ser apossado de múltiplas formas e produzir usos e significações diferenciadas, vejamos brevemente esse objeto em três momentos/cenários distintos: 1. na Idade Média; 2. logo após o surgimento da imprensa de tipo móvel e; 3. no interior da Indústria Cultural.

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1.
Em um clássico estudo sobre o surgimento das Universidades, Os Intelectuais na Idade Média, Jacques Le Goff demonstra como as mudanças da Europa Ocidental entre os séculos X e XII são correlacionadas com alterações substanciais na função do livro.

Durante boa parte da Idade Média, especialmente o período que vai do século VII à primeira metade do século IX, os codex manuscritos eram, para quem os possuía, objetos de luxo, bens econômicos: “Os magníficos manuscritos da época são obras de luxo.(...) Mais ainda, eles não são feitos para serem lidos. Destinam-se a engrossar os tesouros das igrejas e dos reis. Era um bem econômico, mais do que espiritual(...) Os livros não são considerados de modo diferente do das baixelas preciosas”. E, eram também, para quem os confeccionava, um momento de penitência, de purgação: “os monges que os escrevem laboriosamente nos scriptoria dos mosteiros não se interessam senão muito secundariamente por seu conteúdo. O essencial para eles é a aplicação devotada, o tempo consumido, a fadiga sentida em escrevê-los. É hora de penitência que lhes valerá o céu” [Le Goff, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 22.].

A revolução por que passou a Europa Ocidental entre os séculos X e XII, com o florescimento das cidades (em contraposição ao espaço fragmentado geográfica e politicamente da Baixa Idade Média), traz consigo a divisão do trabalho e o surgimento das escolas urbanas e das primeiras universidades — com esse novo sistema de ensino/ saber há profundas alterações nas funções e nas formas do livro.

A cópia, agora com a finalidade de leitura, passa a ser entendida como um trabalho intelectual, e o ensino, apesar de continuar concebendo os exercícios orais como essenciais, passa a ter no livro a sua base.

Esse novo objeto, o livro universitário (que muitas vezes era relacionado ao programa dos mestres e, portanto, deveria ser copiado rapidamente para ser consultado antes dos exames) engendra, como salienta Le Goff, alterações no processo de confecção do codex: confeccionam-se folhas de pergaminho menos espessas, mais flexíveis e menos amarelas; o formato mais usual é diminuído; utilizam-se letras mais simples, escritas agora com pena de ave (e não com cana); diminui-se a ornamentação (iluminuras e miniaturas); além do crescimento das abreviações e progressos na paginação, rubrica e índices. As alterações são tantas que costuma-se dividir a evolução do manuscrito na Europa em duas fases: o período monástico, até o século XIII, e o período leigo, a partir de então.

As novas funções do manuscrito e a necessidade de multiplicação das cópias engendra a utilização do “exemplar” — o livro 'modelo' — em que os cadernos não estavam costurados entre si, o que possibilitava a execução de várias cópias manuscritas simultâneas.

Essas alterações sofridas pelo livro no século XIII, na busca de maior rapidez da circulação, constituem, nas palavras de Le Goff: “um nascimento, mais que um renascimento, esperando a imprensa”.

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2.
A revolução preparada e aguardada pelo surgimento do livro universitário estava por vir. O fim da era da cópia manual se anunciava. E ela viria em torno de 1450/1455 quando, em Mainz, inicia-se a imprensa moderna, a tipografia: caracteres metálicos em relevo e a prensa para impressão. Essa invenção que associa-se historicamente aos nomes de Gutenberg (Johann Gens Fleisch), que fez o processo, de Jean Fust, o burguês que o financiou, e de Pierre Schoeffer, seu auxiliar, expande-se rapidamente pela Europa e o comércio do livro organiza-se.

Antes de nos referirmos à revolução causada pelo advento da imprensa moderna na Europa, retenhamos uma observação: a invenção e a difusão da tipografia não altera a forma codex, o objeto livro continua sendo composto por folhas dobradas, reunidas em cadernos colados uns aos outros e, mais do que isso, por volta de 80 anos, o livro impresso mantem-se fortemente atado ao manuscrito, “imitando-lhe a paginação, as escrituras, as aparências” [Chartier, Roger. Obra citada, p. 96.]. Assim, o advento da imprensa não gerou, quanto à apresentação do livro, nenhuma alteração súbita. Elas virão lentamente no decorrer do século XVI. Os incunábulos (livros impressos entre 1455 e 1500) mal se distinguem, aos nossos olhos, dos manuscritos.

O livro impresso foi, desde sua aparição, fundamentalmente, o que é hoje: uma mercadoria [Febvre, Lucien e Martin, Henri-Jean. L'apparition du livre. Paris: Albin Michel, 1971.]. É essa finalidade que, em última instância, determinará, no surgimento da imprensa, a seleção, ao lado de publicações religiosas, da publicação, não só de autores contemporâneos, mas também de clássicos e outros textos que já tinham tido sucesso enquanto manuscrito.

O livro, essa mercadoria, tem uma potencialidade específica que se delineia marcadamente desde o início da imprensa: é veículo transmissor, é “fermento” no processo de divulgação de mensagens e idéias. Assim, a imprensa, impulsionada pelo humanismo nascente, será fundamental para o seu triunfo, assim como para as idéias reformistas de Lutero que se expandem rapidamente pela Europa graças ao trabalho dos ambulantes e, quando necessário, a uma rede semi-clandestina de distribuidores. (Outra alteração fundamental acarretada pelo surgimento e desenvolvimento da imprensa na Europa, foi a consolidação das línguas nacionais.)

Transmissor destas novas idéias, o livro é contemporâneo de outras potentes transformações (invenção da pólvora e das armas de fogo, concepção ptolomaica de mundo, período das grandes navegações) que alteraram, por efeito cumulativo, a vida e a mentalidade dos homens dos séculos XV - XVI e que instalaram aquilo que se convenciona chamar de homem moderno.

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3.
A história do livro entre o século XVI e o século XVIII será, basicamente, a de sua atuação enquanto veículo de novas idéias, propulsor e configurador de mentalidades, e, também, história de sua regulamentação e luta contra as várias formas de censura e coerção.

Será só no século XIX que inovações técnicas (transformações nas formas de fabricação do papel e desenvolvimento nas técnicas de impressão), alterarão profundamente o perfil do livro, sendo as bases materiais da fase denominada por Martyn Lyons a do “triunfo do livro”. Esse período está ligado não só tecnicamente à Revolução Industrial, como também a mudanças nas formas de vida advindas como desdobramento desta, pois “produto de consumo, o livro tem que ser visto dentro do contexto de desenvolvimento do tempo de lazer e aumento da distribuição de outros produtos de consumo” [Lyons, Martyn. Le triomphe du livre. Paris: Promodis, 1987, p.11.].

Com a expressão “triunfo do livro” Martyn Lyons está assinalando o período em que começa-se um comércio de livros de produção em massa e bom preço, período esse que, na França, situa-se por volta da primeira metade do século XIX. Como condições preliminares para a existência desse período tem-se, naquele país, a expansão da alfabetização e um desenvolvimento da conformidade lingüistas (em contraposição à multiplicidade dos dialetos).

O mercado de livros foi a primeira forma do mercado de consumo de bens simbólicos que, germinada desde o século XV, desenvolve-se no XIX e consolida-se no XX, como face primordial daquilo que correntemente se denomina sociedade de consumo.

Primeiro produto cultural a ser industrializado e estandardizado, o livro é o ramo da cultura em que primeiro se efetivou o processo de massificação, incluindo aí toda a valoração negativa que esse processo possa ter, enquanto domesticador da cultura popular e diluidor da cultura erudita [Adorno, Theodor e Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 (original de 1947), p. 113-156.].

Esse aspecto negativo da industrialização do livro tem conduzido a diagnósticos bastante sombrios sobre a função das práticas da leitura na contemporaneidade. Assim, por exemplo, Marie Kuhlmann, buscando retratar tendências do livro no mundo atual, aponta para uma “uniformização do gosto e das práticas de leitura pelo grande público”, uniformização essa que seria efeito dos grupos multinacionais produtores de mercadorias culturais e da vitória do marketing construindo “uma demanda de leitura que não se apóia em um enraizamento real na cultura plural do livro” [Charon, Jean-Marie (org.). L'état des médias. Paris: La Découverte- Mediaspouvoir/ CFPJ, 1991, p. 230-231.].

Não menosprezando os aspectos e efeitos negativos da massificação da cultura, acreditamos ainda que no interior da indústria cultural o livro é o ramo de maior margem de maleabilidade na sua industrialização (até pelo seu baixo custo de produção em relação aos outros ramos) e é o ramo no qual a esfera de atuação da liberdade do receptor é mais ampla — por exigir dele uma atitude mais ativa, um esforço mais pessoal e domínio no tempo de fluição. Nesse sentido, relembremos uma citação utilizada por Albert Labarre na conclusão de seu História do Livro: “O impresso continua indispensável para quem quer ser responsável por sua informação, ter uma atitude ativa diante da cultura. Neste mundo banhado de ondas e de imagens, o livro representa um esforço pessoal e saudável” [Labarre, Albert. Histoire du livre. Paris: Puf, 1994.].

II. Leitores e leituras

Toda leitura é a construção de um sentido, não necessariamente análogo ao desejado pelo autor. Mesmo acreditando-se na necessária multiplicidade de leituras e enfatizando-se a independência da apreensão de um texto em relação ao impresso, temos que afirmar, entretanto, que essa liberdade não é arbitrária. Ato “por definição rebelde e vadio” há na leitura, por parte do leitor, diferentes modalidades de apropriação do escrito, que estão em jogo constante com estratégias de imposição de sentido, presentes no texto.

“As obras (sejam elas simbólicas ou materiais) são desigualmente abertas às apropriações, aos costumes e inquietações dos seus diferentes públicos” [Chartier, Roger. Obra citada, p. 10.]. Assim, se, por um lado, há a astúcia e a individualidade do leitor, individualidade que está inscrita em modos genéricos histórica e socialmente marcados de leitura, existem também, no texto impresso, conduções e caminhos que guiam a multiplicidade de leituras.

A materialidade do livro é o primeiro condicionante e conformador da situação de leitura. Neste sentido, Roger Chartier, sintetizando vários estudos mais pontuais, já demostrou como as transformações do livro são suportes para a passagem social da leitura oralizada para um leitura silenciosa. O mesmo autor já verificou essa correlação também no que diz respeito à passagem da leitura “intensiva” (que dedica-se a alguns poucos livros) para a “extensiva” debruçando-se sobre muitos impressos).

Até a metade do século XVII os leitores eram confrontados com poucos livros, e os momentos de leitura pessoal se davam em práticas culturais comunitárias (leitura de textos na família ou na igreja). Nesses momentos, os textos eram mais conhecidos do que lidos, e a leitura, reverenciada. A partir de 1750, o crescimento numérico, as facilidades de acesso aos livros e a desvinculação do ato de leitura das festas e celebrações religiosas e familiares, impõe uma maneira de ler, na qual o leitor passa de um texto a outro e não mais investe o livro da mesma reverência e respeito [Chartier, Roger. “Do livro à leitura”. In: Chartier, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p.77-105.].

Tanto a passagem da leitura oral para a silenciosa quanto a da “intensa” para a “extensa”, são apenas sucessões diacrônicas dominantes do ponto de vista de uma história social da leitura; essas mesmas diferenciações podem ser concomitantes ou simultâneas em determinadas sociedades e épocas, como também, de um ponto de vista psico-pedagógico, podem ser enfocadas como diferentes etapas do processo de aquisição de competência linguística individual.

Se os aspectos materiais do livro são conformadores básicos do ato de leitura, devemos também afirmar como condicionante correlato do ato de ler um conjunto múltiplo de fatores extra-texto que podem ser agrupados em três campos que são, ao mesmo tempo, individuais e coletivos: o âmbito da psicologia (disponibilidades espirituais e físicas para o ato de ler e em direção a uma determinada leitura); as determinações históricas (políticas e sociais) e a biblioteca existente, ou seja, o repertório de leituras anteriores de uma época e de um leitor [Goulemot, Jean Marie. “Da leitura como produção de sentido”. In: Chartier, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 107-116.].

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No século XX, emoldurando e condicionando o ato e a disponibilidade para leitura de livros, atuam, com grande força, a representação do livro nos demais meios de comunicação de massa.

A leitura de livros, enquanto disponibilidade genérica ou enquanto fixada em um título específico, é um ato que de alguma forma já sofreu uma certa pré-codificação e pré-orientação. Em nossa sociedade midiática, as representações dos livros nos demais meios de comunicação de massa são espaços privilegiados dessa pré-codificação implícita ao ato de leitura. Também atualmente os diferentes processos de “tradução” entre dos diversos suportes fazem parte da identidade e da história de cada um dos suportes.

© SANDRA REIMÃO, 2004
Professora Livre Docente da Universidade de São Paulo (USP)
e bolsista de Produtividade CNPq. Publicou, entre outros, os livros:
Mercado Editorial Brasileiro (Com-Arte / Fapesp, 1996), Livros e televisão - correlações (Ateliê, 2004)
e Repressão e resistência - censura a livros na ditadura militar (Edusp / Fapesp, 2011).
Texto reproduzido com a autorização da autora
Imagens: Escritório do Livro