A encadernação
Breves notas históricas
Dorothée de Bruchard
Proteger e preservar o objeto livro é um cuidado constante desde o início de sua história. Os egípcios, por exemplo, protegiam as bordas de seus rolos de papiro com tiras coladas, enquanto que os antigos gregos e romanos costumavam envolvê-los em capas de pele ou pano ou, em se tratando de obras mais valiosas, em bibliotecas (biblio + thêkê, cofre para livros), isto é, cilindros de madeira, pedra ou metal onde se acomodavam vários rolos | Cf. Oliveira, v.2 (1985) p. 57 |. A prática de encadernar os livros para melhor conservá-los foi uma decorrência natural da passagem do rolo para o códex, cujo uso foi se sistematizando no Império Romano a partir do século I.
Os primeiros livros eram compostos por folhas simples de pergaminho, mais tarde de papel, dobradas duas vezes e reunidas em cadernos (de quaterni, em referência às quatro páginas resultantes da dobradura), costurados na dobra por meio de nervos. Os cadernos, por sua vez, eram costurados a flexíveis tiras de couro dispostas em ângulo reto em relação ao dorso. Paulatinamente, a folha foi se tornando maior e sendo dobrada mais vezes.
O pergaminho tendia a ondular e, para manter as folhas planas, criou-se o hábito de prendê-las entre duas tabuletas de madeira. O passo seguinte foi prender a essas tabuletas as pontas das tiras que já prendiam os cadernos, cobrindo então com couro as tabuletas e o dorso, criando-se assim a lombada. Estavam dados os princípios da encadernação tal qual a conhecemos.
Até o Renascimento, os livros não eram guardados em pé, e sim deitados sobre as prateleiras ou mesas. Suas capas continham espécies de calombos, feitos de metal ou pedra incrustada, que os mantinham erguidos acima da superfície, driblando assim a umidade. A lombada, pouco visível, não trazia o título, sendo este inscrito em etiquetas que eram atadas à capa, não raro protegidas por chifre transparente. Para evitar a ondulação do pergaminho, fechos e brochas nas bordas das tabuletas mantinham o livro bem fechado.
Esta nova aparência plana do livro favorecia, naturalmente, sua ornamentação. Na Grécia e Roma antigas, a ornamentação dos rolos de papiro consistia essencialmente na aplicação de medalhões contendo efígies de membros da realeza. Já o códex, embora surgisse inicialmente como um formato “pobre”, constituído por um simples livro plano (por diversas razões, inclusive a econômica, o rolo permaneceu associado à literatura pagã, e o códex, à cristã), foi paulatinamente se transformando, com a crescente expansão e poderio da Igreja, no suporte privilegiado de autênticas obras de arte. Assim é que, no século IV, reclamava S. Jerônimo numa epístola: “Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com ouro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas totalmente nu diante de suas portas, Cristo está morrendo”.
Pois os livros sagrados já então se tornavam inapreciáveis obras de arte. Em práticas surgidas primeiro no Oriente e, através de Bizâncio, difundidas por todo o Império Romano nos primeiros séculos do cristianismo, as encadernações, executadas por artistas, utilizavam placas de marfim ou metais como cobre e prata, e traziam incrustações de pedras preciosas, ouro maciço, ou pintura em esmaltes coloridos à guisa de ornamento. Esta forma luxuosa de valorizar a palavra divina manteve-se pela Idade Média, notadamente durante a Renascença Carolíngia ou o Império Otomano.
À esquerda, capa do Codex Aureus de St. Emeran (França, 870), em ouro e pedras preciosas.
À direita, capa em prata dourada do séc. VI (28 x 23 cm), encontrada em Antióquia, Turquia.
Já no século X, com a escrita e a feitura do livro basicamente restritas aos mosteiros, uma ornamentação austera substitui as pesadas capas de metal e marfim. São utilizadas tabuinhas de madeira, revestidas com couro (de cervo, asno, porco, vitela...).
Evangelho de S. João (séc. VII), pertencente a S. Cuthberth (St. Cuthbert Gospel).
A ornamentação, com linhas pintadas em azul e amarelo sobre couro vermelho,
traz os entrelaços característicos do estilo CELTA.
O couro, úmido, era marcado com rosetas ou florões gravados na ponta de uma barra de ferro tubular (esses instrumentos são até hoje conhecidos como ferros, embora sejam feitos de cobre). Os primeiros ferros foram inspirados nos estilos clássicos romano e bizantino, mas incorporaram, no século XII, os motivos e estilo da arte gótica. A partir de então, acompanhariam os movimentos e tendências das artes ornamentais em cada época e região.
Ferros do estilo GÓTICO-MONÁSTICO. O adorno no estilo monástico consistia geralmente em traçados de 3 filetes grossos, formando quadrados e retângulos em meio aos quais estampavam-se os ferros, completado com pregos, cantoneiras e fechos. ¶ À direita, capa em couro marrom do Bartolomeus, (final do séc. XV). As cantoneiras e fechos são de cobre.
Entre o séc. XIII e XVIII, floresce na Espanha, por influência moura, o estilo MUDÉJAR. Seus ferros têm forma de cordas retorcidas, e permitem infinitas combinações geométricas. O resultado, belíssimo, é uma capa muito adornada, com poucos claros.
Com o advento da imprensa, no século XV, e a crescente demanda e difusão do livro, tem início uma era dourada para a encadernação, que entra definitivamente na categoria das obras de arte. Por outro lado, como em muitas outras áreas, a passagem da Idade Média para a Era Moderna significou uma transição da produção corporativa para a da iniciativa privada: as encadernações agora deixam os mosteiros para os ateliês especializados, que trabalham por encomenda para abastados mecenas, bibliófilos e colecionadores.
A arte de encadernar apresenta então algumas inovações técnicas: surgem as rodas de desenho contínuo, os ferros apropriados às cantoneiras, difunde-se o uso do papelão em substituição às tabuletas de madeira (trazendo mais leveza às capas), e a técnica da douração.
Esta nova arte, trazida dos países do Oriente, floresceu inicialmente na Itália, de onde logo se estendeu para outros países europeus.
Quem primeiro teve seu nome associado a um estilo foi Aldo Manucio, o célebre impressor humanista que, rompendo definitivamente com os pesados modelos medievais, foi o primeiro editor conhecido pelo estilo próprio de suas encadernações. As encadernações ALDINAS, sóbrias e elegantes, utilizavam vinhetas ornamentais concebidas e gravadas para a tipografia, estampadas em dourado sobre o couro, acompanhadas de filetes gofrados. Este estilo permitia a execução de florões simétricos e as mais variadas combinações geométricas — técnica adaptada da arte árabe-mourisca.
À esquerda: ferros aldinos.
À direita: encadernação de Manúcio para as Obras de Cecelio Stazio (Veneza, 1502).
Embora muitos outros estilos ainda surgissem na Itália nesse período, ficaram conhecidos não pelo nome do encadernador, e sim pelo do proprietário do livro — Maioli, ou Canevari, por exemplo, ambos bibliófilos e mecenas que promoveram as artes do livro.
O mecenas Jean Grolier, visconde d'Aiguisy (1479 - 1565), também tesoureiro do rei francês, trouxe de suas freqüentes viagens à Itália seu entusiasmo pelo trabalho de Aldo — começou utilizando os próprios ferros aldinos, mas soube a partir deles chegar a uma infinidade de modelos em forma de folha, que vazou e listrou, criando belíssimo efeito.
À esquerda>, ferros utilizados por GROLIER. ¶ No centro, capa de De Vita Leonis Decimi Pont, de P. Jovius (1549), encadernado por Claude de Picques para Jean Grolier. ¶ À direita, Noctes Atticae, de Aulus Gellius, em edição de Manúcio (Veneza, 1515), encadernada por Grolier. Nas duas capas vê-se, embaixo, a divisa do bibliófilo: Io Grolieri et amicorum (para Grolier e seus amigos).
A partir do século XVII, na seqüência do forte incentivo às artes e ao livro dado pelos reis mecenas Francisco I e Henrique II, a França firmava-se como grande centro da encadernação artística, papel que vem mantendo até os dias de hoje. Primeiro país a adotar o uso do marroquim — o qual, aliado à técnica da douração, possibilitou obras de grande refinamento — deixou grandes nomes e belos estilos como, por exemplo, Padeloup, ou Le Gascon, cujos ferros eram desenhados com linhas pontilhadas.
O estilo FANFARE floresceu a partir de 1570 e se estendeu pelo século seguinte. Seus principais artesãos foram “os Éve”, Nicolas e Clovis, pai e filho, encadernadores e douradores do Rei. De execução complexa, consistia em ramos de louro e palmeira, de flores, combinados em desenho geométrico e acompanhados de espirais e volutas variadas. Era também muito usado o filete duplo ou triplo no enquadramento. O centro costumava ficar vazio, ou então trazia o brasão de seu proprietário.
O estilo foi “relançado” no século XIX, quando em 1825 o escritor e bibliófilo francês Charles Nodier pediu a Thouvenin, seu encadernador favorito e um dos mais prestigiados de seu tempo, que realizasse um trabalho “de época” para um exemplar, encontrado num sebo, de uma obra rara de 1610, Les Fanfares et Courvées Abbadesques. O sucesso foi tamanho que, desde então, o estilo é comumente designado pelo termo fanfare.
À esquerda, a encadernação FANFARE de Office de la semaine sainte (Paris, 1715) traz no centro as armas do rei Luís XIV. ¶ À direita, Le Séjour d’honneur, de O. de Saint-Gelais (1503) encadernado por Joseph Thouvenin (meados do XIX).
À esquerda, capa em estilo MOSAICO — técnica que utiliza recortes de couro de cores variadas, embutidos ou superpostos — realizada por Augustin du Seuil para a edição de Daphnis et Chloé pertencente ao Regente (1718). ¶ À direita, também em mosaico, encadernação de Teatro Jesuitico (Coimbra, 1654) realizada em Paris por Jacques Antoine Derôme, em que o próprio pássaro, ao centro, é inteiramente composto por pequenas curvas.
No século XVIII, muitas mulheres, além de leitoras e escritoras, eram colecionadoras de livros, o que naturalmente influenciou a arte da encadernação. Surgia assim, nessa época do rococó, o estilo DENTELLE (renda) — que se caracteriza por compor uma espécie de rendado nas bordas da capa.
Abaixo, à esquerda: ferros utilizados pelas várias gerações da família Derôme, de que Jacques Antoine (1696-1760) foi dos mais ilustres representantes. Embora de influência barroca, foram habilmente estilizados e formam um conjunto leve — os Derôme foram os grandes difusores do estilo DENTELLE, embora trabalhassem também com outros padrões. ¶ À direita, encadernação para a tradução francesa das Œuvres completes de Alexander Pope, realizada no ateliê de Nicolas-Denis Derôme (Paris, c. 1780).
A Inglaterra só tardiamente, durante o período da Restauração, passou a desenvolver estilos próprios de encadernação, contribuindo desde então com trabalhos admiráveis e inconfundíveis.
À esquerda: Esta encadernação do início do séc. XVIII bem demonstra como o comércio florescente com o Oriente Médio favoreceu a influência, na ornamentação inglesa, da arte oriental, notadamente dos tapetes persas. Executada em estilo COTTAGE ROOF (o nome se deve à forma retangular com 2 triângulos nas pontas, que lembra um telhado visto de cima). ¶ No centro: O mais antigo exemplo de encadernação em estilo NEO-CLÁSSICO (1762) — trata-se da capa do primeiro volume de The Antiquities of Athens, de J. Stuart e N. Revett, realizada em marroquim vermelho e bordas douradas. ¶ À direita: Capa de The English Garden (1783), concebida segundo um método absolutamente inovador, o TRANSLUCENT BINDING, concebido por William Edwards e seus filhos James e John, os “Edwards of Halifax”. Imagens eram pintadas no verso do pergaminho transparente especialmente preparado, ao qual se acrescentava um fundo em papel branco. Além do bonito efeito, este método impedia que a capa se sujasse — a pintura ficava protegida, e bastava limpar o lado externo com um pano úmido.
O século XIX, com todas as transformações decorrentes do avanço da tecnologia, trouxe algumas mudanças cruciais à apresentação do livro. Estes, antes vendidos sem capa e mandados encadernar pelo proprietário, eram agora trazidos a público em forma de brochura — com capas de papel, onde a possibilidade de impressão a cores motivou um desenho gráfico mais elaborado. Aparecem também as encadernações industriais, com revestimento em tecido e ferros padronizados.
Capa de Sans Famille, de Hector Malot, na coleção infanto-juvenil da
J. Hetzel et Cie. (Paris, 1878). Impressa em dourado e preto sobre tecido azul.
Nada disto, entretanto, afetou a arte da encadernação, que se manteve como um trabalho artístico em nada concorrendo com a produção em grande escala.
O inglês T.J. Cobden-Sanderson (posteriormente editor da Doves Press), integrante do movimento ARTS & CRAFTS, cumpriu na encadernação o papel que coube a William Morris na edição — valorizar o trabalho artesanal em detrimento da produção industrial. ¶ À esquerda, capa para Sigurd, The Volsung, de Morris (Londres, 1876) e, ¶ à direita, para Poems de Dante Gabriel Rossetti (1870), ambas com os motivos florais que caracterizavam sua produção, a partir de ferros desenhados por ele próprio.
Paul Bonet (1889-1971), belga radicado em Paris, foi um dos maiores expoentes da encadernação do século XX. Criou, entre outros, o estilo RADIANTE, em que linhas paralelas com imperceptíveis variações de intervalo entre si dão a ideia de um conjunto em três dimensões. Acima, duas diferentes encadernações suas para Le Poète assassiné, de Guillaume Apollinaire (1926).
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
· Blasselle, Bruno. Histoire du livre II - Le triomphe de l'édition. Paris: Gallimard, Découvertes, 1991.
· Febvre, Lucien; Martin, Henri-Jean. O aparecimento do livro. Trad. Fulvia Moretto e Guacira M. Machado. São Paulo: Ed. Unesp/Hucitec, 1992.
· McMurtrie, Douglas C. O livro. Trad. Maria Luísa Saavedra Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª ed., 1997.
· Monje Ayala, Mariano. El Arte de la Encuadernación. Madri: Clan Librería-Editorial, 1998.
· | Oliveira, José Teixeira de |. A fascinante história do livro. Volumes II (1985) e IV (1989). Rio de Janeiro: Kosmos.
© | Dorothée de Bruchard | 1999
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