Acerca da imprensa
Gérard de Nerval
(1808-1855)
Tradução de Dorothée de Bruchard
“À Propos de l'imprimerie” foi extraído de “En marge des Illuminés”,
in Les Illuminés ou Les Précurseurs du socialisme,
nas Obras Completas do escritor francês (Paris: Garnier, 1986).
Discute-se a respeito de Gutenberg, Faust e Schoeffer vendo no primeiro um inventor, no outro, um simples capitalista, e no terceiro, um mero empregado do segundo — o qual teria descoberto sozinho a idéia da letra móvel. Vou tentar dizer, historicamente, o que é a letra móvel.
Existe em Uppsala uma Bíblia em latim do século IV, inteiramente impressa com caracteres móveis. Vejam como:
Fabricaram punções representando todas as letras do alfabeto, que punham em brasa e aplicavam, um a um, com muita perda de tempo, decerto, em folhetos de pergaminho nos quais deixavam uma impressão preta. Foi um abade do sul da França quem conseguiu realizar, com a ajuda de seus monges, este estranho empreendimento. — Só que a idéia não era nova.
Os romanos já conheciam a arte de imprimir, desta mesma maneira, nomes e legendas nos afrescos pintados das cúpulas dos templos. O punção em brasa gravava as letras sobre a pintura. Conservaram-se fragmentos destas tentativas.
Visitando recentemente o museu de Nápoles, pude ver punções de bronze encontrados entre as ruínas de Pompéia — que traziam em relevo inscrições de várias linhas, destinadas a marcar tecidos. — Não me venham falar, portanto, em descoberta da impressão xilográfica!
Ninguém jamais inventou nada — só redescobriu. Quem passar por Harlem, no país das tulipas, verá na praça principal a estátua de Laurent Coster, diante da qual me detive respeitosamente, e sobre a qual compus um soneto, com o qual não vou afligir os presentes, mas em que consta este verso sobre os três inventores cujos perfis, em medalhões, ornam o título de nossas edições estereótipas:
Laurent Coster! seu mestre... ou rival, salve!
Todo holandês acredita que Laurent Coster, santeiro, é o real inventor, pelo menos da impressão xilográfica, visto que tivera a ideia de gravar na madeira os nomes de Alexandre, César, Pallas ou Heitor, em blocos que lhe serviam para imprimir cartas de baralho.
Os holandeses estão enganando a si mesmos, — e não receio dizê-lo, mesmo que em 20 de novembro compareçam ao leilão de Techener com o intuito de alçar a preços impossíveis o exemplar, que estará sendo vendido, da História das evasões do abade de Bucquoy!
Um certo tirano de Esparta, chamado Agis, tinha o costume de consultar as entranhas das vítimas antes de dar combate. No seu íntimo, nutria uma fé apenas medíocre nestas práticas — mas havia que se moldar ao espírito da época.
Os maus presságios se repetiam, o que talvez se devesse a combinações sacerdotais... O tirano teve, de súbito, uma idéia. Escrever na mão esquerda a palavra nikh (vitória) com uma substância preta e gordurosa. Escreveu-a, inclusive, do avesso. — Parece-me estar aí a concepção tipográfica.
Enquanto príncipe, cabia-lhe decifrar aquela parte da pele das vítimas que revelava uma membrana branca recobrindo as entranhas. Teve o cuidado, pondo ali sua mão esquerda, de imprimir a palavra nikh. Os espartanos, — confiantes, então, com a resposta dos Deuses, travaram a batalha e venceram.
Aquele tirano tinha tino, — e, sem reler sua história, imagino que deva ter se mantido por muito tempo no trono de Esparta — cidade que então só era republicana de nome; uma república governada por príncipes!...
Percebe-se que não há nada de novo debaixo do sol.
Deixei, propositalmente, de falar nos chineses, porque um povo que faz remontar a antigüidade de sua raça a 72.000 anos só tem para nós bem pequeno valor histórico. Tive a oportunidade de observar alguns de seus ensaios tipográficos, que remontam a apenas mil anos antes de nossa era. É justo dizer que não inventaram a letra móvel: — são blocos de madeira que se imprimem pelo procedimento da gravura.
| TEXTO ORIGINAL |
© tradução | Dorothée de Bruchard | 2003.
Reprodução proibida
Imagem: Escritório do Livro