Acerca da imprensa

Gérard de Nerval
(1808-1855)

Tradução de Dorothée de Bruchard


À Propos de l'imprimerie” foi extraído de “En marge des Illuminés”,
in Les Illuminés ou Les Précurseurs du socialisme,
nas Obras Completas do escritor francês (Paris: Garnier, 1986).

Pieter Saenredam. Tipografia em Harlem, 1440
(Invenção de Laurens Jansz Coster)
, 1628.

Discute-se a respeito de Gutenberg, Faust e Schoeffer vendo no primeiro um inventor, no outro, um simples capitalista, e no terceiro, um mero empregado do segundo — o qual teria descoberto sozinho a idéia da letra móvel. Vou tentar dizer, historicamente, o que é a letra móvel.

Existe em Uppsala uma Bíblia em latim do século IV, inteiramente impressa com caracteres móveis. Vejam como:

Fabricaram punções representando todas as letras do alfabeto, que punham em brasa e aplicavam, um a um, com muita perda de tempo, decerto, em folhetos de pergaminho nos quais deixavam uma impressão preta. Foi um abade do sul da França quem conseguiu realizar, com a ajuda de seus monges, este estranho empreendimento. — Só que a idéia não era nova.

Os romanos já conheciam a arte de imprimir, desta mesma maneira, nomes e legendas nos afrescos pintados das cúpulas dos templos. O punção em brasa gravava as letras sobre a pintura. Conservaram-se fragmentos destas tentativas.

Visitando recentemente o museu de Nápoles, vi punções de bronze encontrados entre as ruínas de Pompéia — que apresentavam, em relevo, inscrições de várias linhas destinadas a marcar tecidos. — Não me venham falar, portanto, em descoberta da impressão xilográfica!

Ninguém jamais inventou nada — apenas redescobriu. Quem passar por Harlem, terra das tulipas, verá na praça principal a estátua de Laurent Coster, diante da qual me detive respeitosamente, e sobre a qual compus um soneto, que não irei aqui infligir aos presentes, mas onde consta este verso sobre os três inventores cujos perfis, em medalhões, ornam o título de nossas edições estereotípicas:

Laurent Coster! seu mestre... ou rival, salve!

Todo holandês acredita que Laurent Coster, santeiro, é o real inventor, pelo menos da impressão xilográfica, uma vez que teve a ideia de gravar na madeira os nomes de Alexandre, César, Pallas ou Heitor em blocos que usava para imprimir cartas de baralho.

Os holandeses estão enganando a si mesmos — e digo isso sem receio, mesmo que eles compareçam ao leilão de Techener, em 20 de novembro, com o intuito de alçar a preços impossíveis o exemplar da História das evasões do abade de Bucquoy que estará sendo vendido!

Certo tirano de Esparta, chamado Agis, tinha o costume de consultar as entranhas das vítimas antes de travar um combate. No seu íntimo, nutria uma fé apenas medíocre nessas práticas — mas havia que se moldar ao espírito da época.

Tinha havido muitos maus presságios, o que talvez se devesse a combinações sacerdotais... Súbito, o tirano teve uma idéia: escrever na mão esquerda a palavra nikh (vitória) com uma substância preta e gordurosa. Escreveu-a do avesso, inclusive. — Parece-me já haver aí a concepção de tipografia.

Enquanto príncipe, cabia-lhe decifrar aquela parte da pele das vítimas que mostrava uma membrana branca recobrindo as entranhas. Teve o cuidado, ao pôr ali sua mão esquerda, de imprimir a palavra nikh. E os espartanos — confiantes diante da resposta dos Deuses — travaram a batalha e venceram.

Aquele tirano tinha tino — sem reler sua história, imagino que deva ter se mantido por muito tempo no trono de Esparta, cidade que então era republicana só no nome; uma república governada por príncipes!...

Como se vê, não há nada de novo debaixo do sol.

Deixei propositalmente de falar nos chineses, porque um povo que faz remontar a antigüidade de sua raça a 72 000 anos só tem para nós bem pequeno valor histórico. Tive a oportunidade de observar alguns de seus ensaios tipográficos, que remontam a apenas mil anos antes de nossa era. É justo dizer que não parecem ter inventado a letra móvel: são blocos de madeira que se imprimem pelo mesmo procedimento da gravura.

| TEXTO ORIGINAL |

© tradução | Dorothée de Bruchard | 2003.
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Imagem: Escritório do Livro