Uma ilha de leitura

Uma lenta inundação: a Desterro dos primórdios editoriais (séc. XIX)

Felipe Matos


Excerto de Uma Ilha de Leitura - notas para uma história de
Florianópolis através de suas livrarias, livreiros e livros (1830-1960)

(Florianópolis: EdUFSC, 2008).

Contudo, a circulação dos livros em Desterro [antigo nome de Florianópolis] não aparenta ser tão crítica como se leva a crer. De 1850 em diante proliferam os anúncios de venda de livros nos jornais e sempre que chegava uma nova remessa de livros pelos paquetes que aportavam na cidade, publicava-se nos jornais a lista das obras a serem comercializadas.
Este convívio entre homens, mulheres, crianças e livros já parecia ser tão natural que até mesmo o humor era permitido nesta relação, como demonstra um pequeno anúncio publicado a pedido num dos jornais da cidade:

Obra interessante. Tratado de botar águas à rua sem molhar quem passa, obra muito útil para os que costumam fazê-lo. Vende-se em brochura por pouco mais de nada, na rua Conceição, sobrado. (1)

Percebe-se nesta fina ironia nascida da intimidade naturalizada entre a sociedade e os jornais civilizadores, uma parte da população — a que lia e consumia os periódicos — começando a habituar-se à cultura impressa. Até o nome dado a este fictício tratado segue à tendência editorial da época em dar títulos longos e explicativos as obras. (2)

[...]

Certamente tal intimidade não nasceu unicamente pelo contato com os catálogos de livros disponíveis. O contato direto com o livro (...) é indispensável para a resignificação do objeto, para que lhe seja dado algum sentido. Hoje, quando entro num sebo qualquer, logo meus sentidos são despertados pelo cheiro característico de material impresso, das folhas dos livros, dos diferentes tipos de papel, das revistas, dos gibis, da poeira e mesmo do mofo e dos inevitáveis ácaros, cuja proliferação é tão comum num clima como o brasileiro. Pois o leitor disposto a adquirir um livro nesta antiga Desterro certamente sentiria no ar outros cheiros, atualmente inimagináveis dentro de livrarias.

É o caso de quem estivesse interessado em falar francês — tão moderno e elegante à época — e necessitasse de um Diálogo Francez e Portugues, à venda na loja de ferragens de David do Amaral e Silva, assim como um Diccionário Latino, um Magnum Léxico, o romance Magdalena, e obras jurídicas como a Legislação do Brasil, o Manual de appellaccoes e aggravos, e o Princípio de Direito Divino e Natural (3).

Já no bilhar da rua da Cadeia (atual Tiradentes), de propriedade de Antônio Jacques da Silveira, o jogador habilidoso, entre um gole e uma tacada, poderia adquirir as Eneidas de Virgílio, traduzidas por João Franco Barielo; ou os folhetos do romance Um Inigma, a 1$000 cada. Neste mesmo literato bilhar, Luiz Nunes Pires cometeu o grave erro de emprestar uma de suas obras, e agora rogava a quem ele havia emprestado seus dois volumes da História da Revolução Francesa, por Cabet, que lhe restituísse sem demora. (4)

Outro ponto de venda conhecido foi o Hotel Universo, de Jules Méssire de Brier, dono de uma biblioteca particular que, em 1861, possuía “cerca de cinco a seis mil volumes escolhidos” (5), com vistas à fundação de um gabinete de leitura. Infelizmente os negócios não andaram muito bem para Mr. de Brier e o Hotel acabou abrindo falência antes que pudesse ter levado sua idéia adiante. Em 1862, pelas dívidas, chegou a ser preso e tentar o suicídio. (6)

Forçosamente tendo que abandonar seus planos, acabou pondo seus livros à venda no próprio Hotel. Junto a salames, biscoitinhos, sardinhas em conserva, ameixas, fígado, charutos cubanos, aspargos e ao salmão de lagosta vendidos no estabelecimento, dificilmente alguém sentiria o aroma dos livros, mesmo que fossem exemplares de Alexandre Dumas, Thiers, Lamartine, Capefique, Eugenio Sue, Montepin, Fondras e outros clássicos ingleses e alemães... (7)

Um dos comerciantes mais famosos e incentivadores da circulação das obras pela cidade foi Antônio Francisco de Farias, dono de um estabelecimento na rua do Príncipe (atual Conselheiro Mafra), nº 01. O leitor mais atento poderá se lembrar que sua casa foi uma das que se propuseram a receber assinaturas para a publicação da obra aqui analisada de Almeida Coelho.

Pois, entre subscrições, chapéus de palha para crianças e uma latinha fresca do Rapé Princesa, de Lisboa (8), poderia se comprar Os Lusíadas, de Camões, e outras obras de autores lusitanos, como Os Portugueses perante o Mundo; o Diccionário Geographico de Portugal; O Observador Lusitano; uma biografia do Marquez de Pombal; e a Descripção dos festejos reais por occasião do casamento de D. Pedro V, Rei de Portugal (9). Se tais assuntos não agradassem, sempre haveria a possibilidade de se recorrer aos Livros de Sorte; ou Ivanhoé, de Walter Scott; Nossa Senhora de Paris, de Vitor Hugo; ou os livros de mistério, romances e aventura que tanto sucesso faziam como Saint-Clair das Ilhas; o Espião do Campo Neutral; o Anão das Pedras Negras; o Cavalheiro da Casa Vermelha; a Porcina Donzella; o Collar da Rainha; a Cortezan de Paris; Gil Beaz Parisiense; a Dama do Lago; o Salteador Saxônico... (10)

O estabelecimento de Antônio Farias foi um dos primeiros a comercializar autores brasileiros, como as brochuras de Cinco Minutos e O Guarany (11), de José de Alencar; além do Moço Loiro (12), de Joaquim Manoel de Macedo, que muito sucesso fez por estas terras. Mesclando elementos de amor e mistério ao documentar o cotidiano do Rio de Janeiro, o livro é um dos grandes expoentes do Romantismo na literatura brasileira. Publicado como folhetim pelo Argos, em 1856, o moço loiro do título teria sido o médico e político desterrense Duarte Paranhos Schutel, companheiro de quarto de Macedo nos tempos de estudante e que o tomou como modelo para a personagem. (13)

[...]

Esta crescente ordem burguesa em Desterro, ao que tudo indica, colabora para se desconstruir a idéia já batida de que a cidade sempre foi uma ilha isolada dos principais fatos culturais de seu tempo, sejam eles nacionais ou estrangeiros. Obviamente a cidade não possuía a dinâmica interna dos grandes centros brasileiros como o Rio de Janeiro e São Paulo. Mas isto não se deve ao seu isolamento, e sim a toda uma lógica própria, intrínseca à sua identidade e toponímia, a sociabilidade marítima, a seus rituais e a seus laços internos que nestes grandes centros já se distenderam.

Aos artigos científicos, às notícias telegráficas, às crônicas sobre os bons-tons, às expressões religiosas, aos anúncios de bailes, saraus e teatros, juntam-se os manuais de civilidade, os romances “cor-de-rosa” carregados de uma “sedução que educa” (14), as revistas dos grandes centros que desembarcavam pelos paquetes...

[...]

Nas entrelinhas deste suposto “isolamento” há aquela revolução despercebida de que falamos. Em toda sociedade letrada, aprender a ler tem algo de iniciação, de “passagem ritualizada” (15). A criança, aprendendo a ler, segundo Manguel, “é admitida na memória comunal por meio de livros, familiarizando-se assim com um passado comum que ela renova, em maior ou menor grau, a cada nova leitura” (16). Sempre que este estigma de isolamento e lentidão intelectual é repetido, ignora-se esta revolução, intrinsecamente presente nesta nova camada urbana.

A História Editorial apresenta-se como uma possibilidade de rompimento com esta linha de pensamento ao buscar mostrar, oculto em indícios como a anedota sobre o “Tratado de botar águas à rua”, o rito de passagem de Desterro, o momento sublime em que o signo é decifrado e a revolução se dá de forma simples e definitiva, ainda que imperceptível.

* * *

NOTAS:

1. O Correio Catharinense. 21/09/1855.
2. A título de curiosidade, em 1886 imprimiu-se num dos gabinetes tipográficos da cidade uma obra que provavelmente suscitou polêmica à época e cujo título — hoje, hilário — ilustra bem esta tendência editorial: “Outra defeza do bacharel Felisberto Elysio Bezerra Montenegro, Juiz Municipal e de Orphãos do Desterro (Província de Santa Catharina) em Novo Processo de responsabilidade perante o corrupto e prevaricador Juiz de direito da Comarca, bacharel Joaquim Tavares da Costa Miranda, flagello dos jurisdiccionados, escória dos magistrados”...
3. O Conciliador Catharinense. 02/02/1850.
4. O Conciliador Catharinense. 03/04/1850.
5. CABRAL, 1979, op. cit., p.108. 6. Idem, Ibid., p.108. 7. A Estrella. 12/09/1861. Apesar de não ser mencionado, possivelmente eram as famosas edições da B.L. Garnier, que lançava à época grande parte destes autores.
8. O Santelmo. 25/07/1860.
9. O Progressista. 19/09/1860.
10. O Argos de Santa Catharina. 08/02/1856.
11. O Progressista. 19/09/1860.
12. O Argos de Santa Catharina. 08/02/1856.
13. CABRAL, 1979, op. cit., p.30.
14. Expressão utilizada por Maria Teresa Santos Cunha. In: CUNHA, M. T.S. Armadilhas da Sedução. Os romances de M. Delly. BH: Autêntica, 1999. P.18.
15. MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. SP: Cia. das Letras, 1997. P. 89.
16. Idem, Ibid., p.89.

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FELIPE MATOS
é doutor em história pela UFSC.

© Felipe Matos, 2008
Texto gentilmente cedido pelo autor
Imagens: Escritório do Livro


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