Livros
Paul Valéry
(1871 - 1945)
Tradução de Dorothée de Bruchard
“Livres”, in Pièces sur l'art. Paris: Gallimard, 1934.
Nada conduz mais seguramente à perfeita barbárie do que o exclusivo apego ao puro espírito. Menosprezar os objetos e os corpos. Deter-se tão somente naquilo que os olhos não alcançam. Recusar todo prazer local, a fruição imóvel e a delonga voluptuosa. O espiritualista consente facilmente em que a matéria é ruim ou mal afeiçoada. Não dá importância ao frasco, limitando-se à embriaguez, a qual não deixa de lhe dar, vez ou outra, perigosas inspirações. O espírito tende a consumir todo o resto, e já aconteceu de ser atendido pela destruição e pelo fogo real.
Conheci bem de perto esse fanatismo. Houve um tempo em que eu desprezava, nos livros, tudo que não fosse leitura. Um trapo qualquer manchado por tipos gastos me bastava. Achava que um papel ruim, caracteres encravados, uma paginação descuidada deveriam contentar um leitor genuinamente espiritual, desde que o texto em si pudesse seduzi-lo.
Mudam-se os gostos, porém, e os desgostos. Crianças não gostam de ostra. Muitos adultos repugnam o leite dos nossos primeiros anos. Se vivêssemos muito mais tempo do que costumamos, esgotaríamos, sem dúvida alguma, todas as combinações possíveis de atrações e repulsões dos nossos sentidos, acabaríamos por queimar todos os nossos ídolos e por adorar todos os objetos de nossas primeiras antipatias.
De minha parte, passei insensivelmente a não mais desdenhar o aspecto físico dos livros. Admiro e acaricio com gosto um desses volumes de alto valor que se equiparam aos mais belos móveis. Não os amo, porém, com um amor de concupiscência — seria pedir para sofrer.
A raridade tampouco me sensibiliza em excesso. Não passa, aliás, de uma noção totalmente abstrata e imaginária, a não ser na sala de leilões. Os olhos não sabem que tal exemplar é único; o tato não tira daí nenhum prazer singular. Gosto, contudo, dos livros sólidos e “confortáveis” como se faziam no século XVII. Não é difícil encontrar a Imitação de Corneille, os Princípios de Descartes, o Discurso sobre a história universal ou a História das Variações [Figuras 1, 2] em nobres in-quartos revestidos de velino escuro e brilhante, larga e negramente impressos, ornados com florões e culs-de-lampe e providos de margens razoáveis. Um autor não poderia desejar edições mais robustas, nem mais adequadas para o leitor muito sério a que ele deve aspirar. Bossuet zelava pela impressão de suas obras; não poupava recomendações e vigilância à viúva Sébastien Mabre-Cramoisy [Figura 2]. Esther [Figura 3] e Athalie, executados pelos cuidados de Denis Thierry e Claude Barbin em formato in-quarto grande, são também muito belos. Infelizmente não se pode cogitá-los, ou melhor, pode-se apenas cogitá-los, uma vez que essas peças, nas condições em que as descrevi, valiam quinhentos ou seiscentos francos em 1860, segundo um catálogo da época, e receio muitíssimo que, de lá para cá, tenham feito o que fazem todas as coisas.
Há exemplos mais puros, contudo, no que tange à tipografia, e o ápice do bom gosto me parece ter sido alcançado pelo Didot que imprimia às vésperas da Revolução, e por seu rival italiano, Bodoni de Parma. Criaram, ambos, caracteres de incomparável nitidez e elegância. Bodoni produziu um Racine pelo qual sempre hei de suspirar. Stendhal, que visitou sua oficina, caçoou um pouco das pesquisas desse artista do livro.
Didot o Velho concebeu e produziu um tipo que parece situar além do tempo os textos entregues às suas prensas. Intimá-lo, em magníficos termos, e devido à beleza de suas obras e excelência de sua arte, a imprimir às custas do Estado as Fábulas de La Fontaine [Figuras 4, 5] e outras obras ilustres, foi um dos derradeiros atos da antiga monarquia.
Figura 4 - Folha de rosto das Fables de La Fontaine impressas por Didot o Velho em 1788, na qual se lê: “Impresso por ordem do Rei para a educação de Sua Alteza o Delfim”. O rei Luís XVI de fato encarregara Didot de editar uma Coleção de Clássicos Franceses (expurgados de trechos tidos como inconvenientes) com vistas à educação de seu primogênito. A coleção somou 31 volumes, que traziam na capa o selo ad usum Delphini (para uso do Delfim), e eram muito procurados pela correção textual e pela primorosa qualidade tipográfica.
Figura 5 - Página da edição de 1802, também impressa por Didot.
© tradução | Dorothée de Bruchard | 2016
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Imagens: Escritório do Livro