Bibliomania
Gustave Flaubert
(1821 - 1880)
Tradução de Dorothée de Bruchard
Datado de novembro de 1836, o conto “Bibliomanie”, primeiro
texto publicado de Flaubert, saiu na revista Le Colibri
(Rouen) em 12 de fevereiro de 1837, assinada F.
Numa rua estreita e sem sol de Barcelona vivia, pouco tempo atrás, um desses homens de fronte pálida, olhar baço, vazio, um desses seres satânicos e esquisitos como Hoffmann desencavava em seus sonhos.
Era Giacomo, o livreiro; tinha trinta anos e já passava por velho e gasto. Era alto, mas curvado como um idoso; tinha cabelo comprido, mas branco; mãos fortes e nervosas, mas dessecadas e cheias de rugas; sua roupa era mísera e esfarrapada; seu jeito, canhestro e atrapalhado; sua fisionomia, pálida e triste, feia, insignificante até. Raramente era visto pelas ruas, a não ser quando iam a leilão livros raros e curiosos. Nesses dias, já não era o mesmo homem indolente e ridículo. Seus olhos se animavam, ele corria, andava, trepidava; só a custo continha sua alegria, suas inquietações, angústias e sofrimentos; voltava para casa ofegante, esbaforido, sem fôlego. Apanhava o livro querido, acariciava-o com os olhos, olhava para ele e o amava, como um avaro o seu tesouro, um pai, sua filha, um rei, sua coroa.
Aquele homem nunca falara com ninguém, a não ser com alfarrabistas e adeleiros; era taciturno e sonhador, sombrio e triste; tinha um único pensamento, um único amor, uma única paixão: os livros; e aquele amor, aquela paixão, queimavam-no por dentro, consumiam-lhe os dias, devoravam-lhe a existência.
Os vizinhos não raro avistavam, à noite, pelas vidraças do livreiro, uma luz que vacilava, avançava, se afastava, subia e, às vezes, se apagava; então ouviam bater à porta, e era Giacomo, vindo acender sua vela assoprada por algum folheto.
Aquelas noites febris e abrasantes, ele as passava com seus livros; corria pelos depósitos; percorria as galerias de sua biblioteca, extasiado e maravilhado, e então se detinha, cabelo em desalinho, olhos fixos e brilhantes. Suas mãos tremiam ao tocar os livros nas estantes; ficavam quentes e úmidas. Apanhava um livro, virava-lhe as folhas, tateava-lhe o papel, examinava-lhe os dourados, a capa, as letras, a tinta, os vincos e a composição do desenho na palavra finis. Depois trocava-o de lugar, punha-o numa prateleira mais alta e ficava horas a fio mirando-lhe o título e a forma.
Ia então até os manuscritos, pois eram seus filhos diletos; apanhava um, o mais antigo, o mais gasto, o mais sujo; contemplava seu pergaminho com amor e felicidade, cheirava-lhe a poeira santa e venerável, suas narinas se inflavam de alegria e orgulho, e um sorriso lhe vinha aos lábios.
Ah! Era feliz, aquele homem; feliz em meio àquela ciência toda de que mal compreendia o alcance moral e o valor literário, feliz em meio àqueles livros todos; passeava os olhos pelas letras douradas, as páginas gastas, o pergaminho descorado. Amava a ciência como um cego ama a luz do dia.
Não! Não era a ciência que ele amava, era a sua forma e expressão. Amava um livro porque era um livro; amava seu cheiro, sua forma, seu título. O que ele amava num manuscrito era a sua velha data ilegível, as letras góticas, bizarras e estranhas, os pesados dourados que carregavam seus desenhos; era as suas páginas cobertas de pó, pó cujo aroma suave e doce ele aspirava com delícia. Era a linda palavra finis cercada por dois amores, inscrita numa fita, apoiada numa fonte, gravada num túmulo ou repousando numa corbelha entre as rosas, as maçãs douradas e os buquês azuis.
Aquela paixão o absorvera por inteiro: mal comia, já não dormia; mas sonhava dias e noites inteiros com sua idéia fixa: os livros. Sonhava com tudo que haveria de divino, sublime e belo numa biblioteca real, e sonhava em constituir uma para si, do tamanho da de um rei. Quão livremente respirava, quão orgulhoso e soberbo se sentia ao mergulhar a vista nas imensas galerias onde seu olhar se perdia nos livros! Se erguia a cabeça? Livros! Se a baixava? Livros! À direita, à esquerda? Mais livros!
Passava em Barcelona por homem estranho e infernal, sábio ou feiticeiro.
Mal sabia ler. Ninguém ousava falar com ele, tão severa e pálida era a sua fronte; tinha um aspecto mau e traiçoeiro, embora nunca tivesse encostado numa criança para molestá-la; verdade é que nunca dera esmola.
Guardava todo o seu dinheiro, todo o seu bem, todas as suas emoções para os livros; tinha sido monge e, por eles, abandonara Deus. Mais tarde, sacrificou-lhes o que os homens têm de mais caro depois de Deus, o dinheiro; então, deu-lhes o que se tem de mais caro depois do dinheiro, a alma.
De uns tempos para cá, sobretudo, suas vigílias andavam mais longas; a lâmpada de suas noites era vista até mais tarde ardendo sobre os livros; é que ele agora possuía um novo tesouro, um manuscrito.
Certa manhã, entrou em sua loja um jovem estudante de Salamanca. Parecia ser rico, pois dois lacaios seguravam sua mula à porta de Giacomo. Usava um gorro de veludo vermelho e anéis brilhavam em seus dedos.
Não tinha, porém, este ar de presunção e nulidade habitual nas pessoas que têm criados agaloados, belos trajes e cabeça oca. Não, aquele homem era um sábio, mas um sábio rico. Ou seja, um homem que, em Paris, escreve em mesa de mogno, possui livros com cortes dourados, pantufas bordadas, curiosidades chinesas, um robe, um relógio de ouro, um gato dormindo no tapete e duas ou três mulheres que lhe pedem para ler seus versos, sua prosa e seus contos, e dizem: você tem espírito, achando que não passa de um fátuo. Os modos daquele cavalheiro eram polidos. Ao entrar, saudou o livreiro, fez profunda reverência e perguntou em tom afável:
— Mestre, o senhor não teria uns manuscritos?
O livreiro ficou embaraçado e respondeu, balbuciando: — Mas, meu senhor, quem disse isso?
— Ninguém, mas eu imaginei — e colocou sobre a escrivaninha do livreiro uma bolsa cheia de ouro, que ele fez ressoar, sorrindo como todo homem ao tocar em dinheiro que lhe pertence.
— Sim, senhor, é verdade, — retomou Giacomo — tenho uns manuscritos, mas não vendo, fico com eles.
— E para quê? O que faz com eles?
— Para quê, meu senhor? — e ficou vermelho de raiva — o que faço com eles? Ora, o senhor ignora o que é um manuscrito!
— Desculpe, mestre Giacomo, entendo do assunto e, como prova, digo que o senhor tem aqui a Crônica de Turpin!
— Eu? Ah, o senhor foi enganado.
— Não, Giacomo — respondeu o cavalheiro; fique sossegado, não quero roubá-lo, mas comprá-lo.
— Jamais!
— Ah! Mas o senhor vai vendê-lo — respondeu o escolar — pois está com ele aqui desde a venda de Ricciamy, no dia em que este morreu.
— Está bem, meu senhor, tenho, sim; é o meu tesouro, é a minha vida. Ah! Não vai arrancá-lo de mim! Escute! Vou lhe contar um segredo. Baptisto, sabe o Baptisto, o livreiro da praça Real, meu rival e inimigo, pois então, ele não tem esse manuscrito, e eu tenho!
— Em quanto o avalia?
Giacomo deteve-se longamente e respondeu, altivo: — Duzentas pistolas, meu senhor. — Olhou para o jovem com ar triunfante, como quem diz: o senhor vai embora, é caro demais mas não vou deixar por menos. Estava enganado, pois o outro, mostrando-lhe a bolsa:
— Aqui tem trezentas — disse.
Giacomo empalideceu, prestes a desmaiar. — Trezentas pistolas? — repetiu — Mas que loucura a minha, meu senhor, não vendo por menos de quatrocentas.
O estudante pôs-se a rir, remexendo no bolso, de onde tirou mais duas bolsas. Pois bem, Giacomo, aqui tem 500. Ah! Você não quer vendê-lo, Giacomo, mas vou consegui-lo, vou consegui-lo hoje, agora mesmo; preciso dele. Nem que tenha de vender esse anel, oferecido num longo beijo de amor, nem que tenha de vender minha espada guarnecida de diamantes, meus palacetes e palácios, nem que tenha de vender minha alma; preciso desse livro. Preciso dele, sim, a qualquer custo, a qualquer preço! Daqui a uma semana, defendo uma tese em Salamanca. Preciso desse livro para ser doutor; preciso ser doutor para ser arcebispo; preciso da púrpura nos ombros para poder ter a tiara na fronte.
Giacomo se acercou e o fitou com admiração e respeito, como ao único homem que o tivesse compreendido.
— Escute, Giacomo — interrompeu o cavalheiro — vou lhe contar um segredo que fará sua fortuna e felicidade. Existe aqui um homem, esse homem reside na barreira dos Árabes; ele tem um livro, o Mistério de São Miguel.
— O Mistério de São Miguel? — disse Giacomo, soltando um grito de alegria; — Ah! Obrigado, o senhor salvou minha vida.
— Dê-me, depressa, a Crônica de Turpin.
Giacomo correu para uma estante; então, parou de súbito, fez força para empalidecer e disse, com ar surpreso: — Mas meu senhor, não o tenho.
— Ah! Giacomo, suas artimanhas são meio grosseiras, e seu olhar desmente suas palavras.
— Ah! Meu senhor, juro que não tenho.
— Ora, mas você é um velho doido, Giacomo; tome, aqui tem seiscentas pistolas. — Giacomo apanhou o manuscrito e o entregou ao jovem: — Tome esse livro, disse; quando o outro se afastava, rindo, dizendo a seus criados enquanto montava na mula: — O seu patrão é louco, vocês sabem, mas acaba de enganar um imbecil. O idiota do monge intratável! — repetiu, rindo, está achando que eu vou ser papa!
E o pobre Giacomo ficou triste e desesperado, apoiando a fronte em brasa nas vidraças de sua loja, chorando de raiva e vendo com dor e pesar seu manuscrito, objeto de seus cuidados e afetos, sendo levado pelos grosseiros criados do cavalheiro.
— Maldito seja, homem do inferno! Maldito seja, cem vezes maldito, você me roubou tudo que eu amava nesse mundo, onde já não vou conseguir viver! Sei que me enganou, o infame, me enganou! Se for assim, ah!, vou me vingar! Não. Depressa, para a barreira dos Árabes. E se o homem me pedir uma quantia que não tenho, o que faço? Ah! É de matar!
Apanha o dinheiro que o estudante deixara na escrivaninha e sai correndo.
Enquanto ia pelas ruas, não via nada do que o rodeava; tudo passava diante dele como uma fantasmagoria cujo enigma não compreendia; não ouvia nem o andar dos passantes, nem o ruído de rodas no pavimento; não pensava, não sonhava, via apenas uma coisa: os livros. Pensava no Mistério de São Miguel, criava-o para si, em imaginação, largo e fino, em pergaminho ornado com letras de ouro; tentava adivinhar o número de páginas que teria. Seu coração batia com violência como o de um homem à espera de sua sentença de morte. Chegou afinal.
O estudante não o enganara!!!
Sobre um velho tapete persa todo furado, estendiam-se pelo chão uma dezena de livros velhos. Giacomo, sem falar com o homem que dormia ao lado, deitado como os livros e roncando ao sol, caiu de joelhos e se pôs a percorrer, com olhar inquieto e aflito, o dorso de todos os livros; então se ergueu, pálido e abatido; acordou o alfarrabista aos gritos e perguntou:
— Ei, amigo, não tem aqui o Mistério de São Miguel?
— O quê? — disse o comerciante, abrindo os olhos — o senhor não quer conversar sobre um livro que eu tenha? Olhe!
— Imbecil! — disse Giacomo, batendo o pé — Você tem outros, além desses?
— Tenho, olhe, estão ali. — E mostrou um pacotinho de brochuras atadas com cordões.
Giacomo os rompeu, leu o título num instante.
— Inferno — disse ele — não é isso. Você por acaso não o teria vendido? Ah! Se o tiver, dê para mim, dê!... Cem pistolas... duzentas... quanto quiser.
O alfarrabista, olhando para ele espantado:
— Ah! O senhor talvez esteja falando de um livrinho que dei ontem, por oito maravedis, ao vigário da catedral de Oviedo?
— Você lembra do título desse livro?
— Não.
— Não era Mistério de São Miguel?
— Era isso mesmo.
Giacomo se afastou alguns passos e caiu na poeira como um homem cansado de uma assombração que o atormenta.
Quando voltou a si, entardecia e o sol, avermelhando no horizonte, estava no ocaso; levantou-se e voltou para casa, doente e desesperado.
Passada uma semana, Giacomo não esquecera da sua triste decepção, sua ferida estava ainda mais viva e sangrenta; não dormira nas últimas três noites, pois nesse dia seria vendido o primeiro livro impresso na Espanha, exemplar único no reino.
Há muito desejava possuí-lo. Assim, ficou feliz no dia em que lhe contaram que seu dono morrera. Mas uma inquietação lhe ocupava a alma: Baptisto poderia comprá-lo; Baptisto que, de uns tempos para cá, tirava-lhe, não os fregueses, isso pouco importava, mas tudo que aparecia de raro e antigo; Baptisto cuja fama ele odiava com um ódio de artista. Aquele homem estava se tornando um estorvo. Era sempre ele quem lhe tirava os manuscritos nos leilões; fazia o lance e levava. Ah! Quantas vezes o pobre monge, nos seus sonhos de ambição e dinheiro, quantas vezes viu vir a ele a mão comprida de Baptisto, atravessando a multidão como em dia de leilão, para lhe tirar um tesouro com que sonhara tanto tempo, que cobiçara com tanto amor e egoísmo.
Quantas vezes, também, foi tentado a concluir com um crime o que nem o dinheiro nem a paciência tinham conseguido fazer; mas reprimia aquela idéia no peito; tentava aturdir-se no ódio que sentia por aquele homem e adormecia sobre os seus livros.
De manhãzinha, já estava diante da casa onde se daria a venda; chegou antes do leiloeiro, antes do público e antes do sol.
Assim que se abriram as portas, precipitou-se pela escada, subiu à sala e perguntou pelo livro, que lhe mostraram; já era uma alegria.
Ah! Nunca vira nenhum tão belo e que o deleitasse tanto; era uma Bíblia latina, com comentários gregos. Ele a olhou e admirou mais que a todos os outros; apertava-a entre os dedos rindo amargamente, como um homem morrendo de fome à vista do ouro.
Também nunca desejara nada tanto assim: Ah! Como quisera então, mesmo ao preço de tudo o que tinha, de seus livros, manuscritos, suas 600 pistolas, ao preço de seu sangue, ah!, domo quisera ter aquele livro, vender tudo, tudo, para ter aquele livro; ter somente aquele, mas tê-lo só para si; poder exibi-lo a toda a Espanha, com um riso de insulto e piedade pelo rei, pelos príncipes, pelos sábios, por Baptisto, e dizer: — É meu, é meu esse livro!, e segurá-lo nas mãos a vida inteira, apalpá-lo como o está tocando agora, senti-lo como o está sentindo e possuí-lo como o está olhando.
Chegou a hora, afinal. Baptisto estava presente, rosto sereno, ar calmo e tranqüilo. Chegou a vez do livro, Giacomo primeiro ofereceu vinte pistolas, Baptisto calou-se e não olhou para a Bíblia. O monge já adiantava a mão para apanhar aquele livro que lhe custara tão pouco esforço e angústia, quando Baptisto disse: 40. Giacomo viu, horrorizado, exaltar-se seu antagonista à medida que subia o preço. — Cinqüenta, gritou com toda a força. — Sessenta, gritou Baptisto. — Cem! Quatrocentos! Quinhentos! acrescentou o monge, com fúria, e enquanto ele trepidava de impaciência e raiva, Baptisto exibia uma calma irônica e maldosa. A voz azeda e rachada do pregoeiro já repetira três vezes: — Quinhentas — Giacomo já se apegava à felicidade, quando um sopro vindo dos lábios de um homem o levou ao desmaio. Pois o livreiro da praça Real, apressando-se na multidão, disse: — Seiscentas! A voz do pregoeiro repetiu: — Seiscentas, quatro vezes, e nenhuma outra voz lhe respondeu. Avistava-se porém, a uma ponta da mesa, um homem de fronte pálida, mãos trêmulas, um homem rindo amargamente com o riso dos danados de Dante. Baixava a cabeça e punha a mão no peito; quando a retirou, estava quente e molhada, pois havia carne e sangue na ponta de suas unhas.
Passaram o livro de mão em mão para entregá-lo a Baptisto. O livro passou por Giacomo, ele sentiu seu cheiro, viu-o correr um instante diante de seus olhos até parar num homem que o pegou e abriu, rindo. Então o monge baixou a cabeça para esconder o rosto, pois estava chorando.
Ao voltar, seu andar pelas ruas era lento e penoso; seu rosto, estranho e estúpido, seu aspecto, grotesco e ridículo; parecia um ébrio, pois cambaleava; seus olhos estavam semicerrados, tinha as pálpebras vermelhas e ardentes; o suor lhe escorria pela testa e ele balbuciava entre os dentes feito um homem que bebeu demais, tomou além do seu quinhão no banquete da festa.
Seu pensamento já não era seu: vagueava, como seu corpo, sem objetivo ou intento; estava vacilante, irresoluto, denso e bizarro; sua cabeça estava quente feito a chama, sua fronte ardia feito um braseiro.
Estava, sim, embriagado do que sentira; estava cansado da sua vida; estava bêbado da existência.
Naquele dia — era domingo — o povo passeava pelas ruas, conversando e cantando. O pobre monge escutava as conversas e canções; apanhava pelo caminho uns fragmentos de frases, algumas palavras, alguns gritos; mas parecia-lhe ser sempre o mesmo som e a mesma voz; era um burburinho vago, confuso, um alvoroço bizarro e barulhento que lhe zumbia no cérebro e oprimia.
— Ora, — dizia um homem ao companheiro — você ouviu falar no caso do pobre vigário de Oviedo, que foi encontrado estrangulado na cama?
Ali, um grupo de mulheres tomando a fresca da tarde à porta de casa. Eis o que Giacomo ouviu ao passar por elas:
— Escute, Martha, sabe aquele jovem rico de Salamanca, Dom Bernardo? Aquele que, quando esteve aqui dias atrás, tinha uma mula preta tão bonita e tão bem aparelhada, que ele fazia empinar no pavimento; pois então, soube hoje de manhã na igreja que esse pobre rapaz morreu.
— Morreu! — disse uma moça.
— Sim, menina, — respondeu a mulher — morreu aqui, no albergue de São Pedro. Primeiro sentiu dor de cabeça, acabou tendo febre e quatro dias depois foi sepultado.
Giacomo ainda escutou muita coisa. Todas aquelas lembranças fizeram-no estremecer, e um sorriso feroz veio vagar em sua boca.
O monge voltou para casa esgotado e doente; deitou-se no chão, sob o banco da escrivaninha e dormiu; seu peito estava oprimido, um som rouco e cavo saía de sua garganta; acordou com febre, um terrível pesadelo esgotara-lhe as forças. Já era noite e onze horas acabavam de soar na igreja vizinha, Giacomo ouviu gritos: — Fogo! Fogo! — Abriu as janelas, foi para a rua e viu, de fato, chamas que se erguiam para além dos telhados. Voltou para casa, e estava para apanhar o lampião e ir até seus estoques quando ouviu, frente à janela, homens que passavam correndo e diziam: — É na praça Real, o fogo é lá no Baptisto. — O monge estremeceu; uma sonora gargalhada brotou-lhe do fundo do peito e ele rumou, com a multidão, para a casa do livreiro. A casa ardia, as chamas se erguiam, altas e terríveis e, levadas pelo vento, lançavam-se no belo céu azul da Espanha que planava sobre Barcelona, agitada e tumultuosa, feito um véu sobre lágrimas.
Avistava-se um homem seminu; que se desesperava, arrancava os cabelos, rolava no chão blasfemando a Deus e lançando gritos de raiva e desespero; era Baptisto. O monge contemplava seu desespero e seus gritos com calma e alegria, com o riso feroz de uma criança rindo das torturas da borboleta à qual arrancou as asas.
Avistava-se, num apartamento alto, chamas queimando uns maços de papéis. Giacomo pegou uma escada, apoiou-a na parede enegrecida e oscilante; a escada tremia sob seus passos; subiu correndo, chegou à janela. Maldição! Eram apenas alguns livros velhos de livraria, sem valor nem mérito. O que fazer? Entrara. Agora era avançar em meio àquela atmosfera incendiada ou descer de volta pela escada cuja madeira começava a esquentar. Não! Avançou.
Atravessou várias salas; o piso tremia sob seus passos, as portas ruíam quando se aproximava, as vigas rachavam acima dele. Corria em meio ao incêndio, ofegante e furioso; precisava daquele livro! Precisava, ou morte. Não sabia para onde dirigir sua corrida, mas corria; deparou-se finalmente com um tabique intacto, quebrou-o com um pontapé e avistou um apartamento escuro e estreito. Tateava, sentiu alguns livros sob os dedos; tocou num deles, pegou-o e levou para fora da sala; era ele, o Mistério de São Miguel; retornou sobre seus passos, feito um homem alucinado e delirante. Saltou por cima dos buracos, voou em meio às chamas, mas não achou a escada que erguera rente à parede; chegou a uma janela e desceu, agarrando-se às saliências com mãos e joelhos. Sua roupa começava a inflamar-se e, quando alcançou a rua rolou no riacho para apagar as chamas que o queimavam.
Passaram-se alguns meses e não se ouvia mais falar no livreiro Giacomo, senão como de um desses homens singulares e estranhos de que a multidão se ri nas ruas, por não compreender suas paixões e manias.
A Espanha se ocupava com interesses mais graves e sérios, um gênio do mal parecia pesar sobre ela. A cada dia, novos assassinatos e novos crimes, e tudo aquilo parecia vir de uma mão invisível e oculta; era como um punhal suspenso sobre cada teto e cada família; era gente sumindo de repente, sem deixar nenhum rastro do sangue vertido por seu ferimento; um homem saía em viagem, não retornava.
Não se sabia a quem atribuir aquele horrível flagelo; pois há que se atribuir a desgraça a algum estranho, e a felicidade, a si mesmo.
Com efeito, existem dias tão nefastos na vida, épocas tão funestas para a humanidade que, sem saber a quem cobrir de maldições, grita-se para os céus; nessas épocas desditosas para os povos é que se acreditou na fatalidade.
Uma polícia alerta e diligente tentara descobrir, é verdade, o autor de todos aqueles crimes. Um espião subornado se introduzira em todas as casas, escutara todas as palavras, ouvira todos os gritos, vira todos os olhares e não desvendara nada. O Procurador abrira todas as cartas, rompera todos os lacres, vasculhara todos os cantos e não encontrara nada.
Certa manhã, no entanto, Barcelona deixou seu traje de luto para ir amontoar-se nas salas da justiça, onde seria condenado à morte aquele que se supunha ser o autor de todos os horríveis assassinatos. O povo ocultava as lágrimas num riso convulsivo; pois, para quem sofre e chora, é um consolo, bem egoísta, é verdade, mas enfim, real, ver outros sofrimentos e outras lágrimas.
O pobre Giacomo, tão calmo e sereno, era acusado de ter incendiado a loja de Baptisto, de ter roubado sua Bíblia. Ainda pesavam sobre ele mil outras acusações. Ali estava ele, então, sentado no banco dos assassinos e bandidos; ele, o honesto bibliófilo, ele, o pobre Giacomo, ele, que só pensava em seus livros, estava então envolvido nos mistérios de assassinato e cadafalso.
A sala estava abarrotada de gente. Finalmente, o procurador levantou-se e leu seu relatório; era longo e difuso, mal se distinguia a ação principal entre parênteses e reflexões. O procurador dizia ter encontrado, em casa de Giacomo, a Bíblia que pertencia a Baptisto, já que aquela Bíblia era única na Espanha. Ora, Giacomo é quem provavelmente ateara fogo na casa de Baptisto, a fim de se apoderar do livro raro e precioso. Calou-se e voltou a sentar-se, ofegante.
Quanto ao monge, estava calmo e sereno, não respondeu sequer com um olhar à multidão que o insultava.
Seu advogado levantou-se, falou bem e longamente. Por fim, quando julgava ter abalado a plateia, soergueu a túnica e dali tirou um livro; abriu-o e o mostrou ao público: era outro exemplar da mesma Bíblia.
Giacomo soltou um grito e caiu no banco arrancando os cabelos. O momento era crítico, esperava-se uma palavra do acusado, mas nenhum som saía de sua boca. Finalmente tornou a sentar-se, olhou para seus juízes e seu advogado como um homem despertando. Perguntaram-lhe se era culpado de ter incendiado a casa de Baptisto.
— Infelizmente, não! — respondeu. — Não. Mas vocês vão me condenar? Ah! Condenem-me, eu suplico! A vida para mim é um fardo, meu advogado mentiu, não acreditem nele. Ah! Condenem-me, matei Dom Bernardo, matei o vigário, roubei o livro, o livro único, pois não existem dois na Espanha. Senhores, matem-me, sou um desgraçado. — Seu advogado aproximou-se, mostrando-lhe a Bíblia: — Posso salvá-lo, olhe!
— Ah! E eu pensando que era o único da Espanha! — Giacomo pegou o livro, olhou-o: — Ah! Diga, diga que me enganou. Maldito seja! — E caiu desfalecido.
Os juízes voltaram e pronunciaram sua sentença de morte. Giacomo escutou sem estremecer e pareceu até mais calmo e mais sereno. Deram-lhe a esperança de que se pedisse misericórdia ao papa, talvez a obtivesse. Ele não quis, pediu apenas que doassem sua biblioteca ao homem que possuísse mais livros na Espanha.
Então, quando o povo já se tinha retirado, pediu ao advogado que fizesse a gentileza de lhe emprestar o livro. Este consentiu.
Giacomo pegou amorosamente no livro, verteu umas lágrimas sobre as folhas, rasgou-o com fúria, depois jogou os pedaços no rosto de seu defensor, dizendo: — O senhor mentiu, seu advogado! Eu não disse que era o único da Espanha?
© tradução / Dorothée de Bruchard / 2005.
Tradução gentilmente autorizada pelo prof. Yvan Leclerc, da Université de Rouen,
que, em sua edição crítica, estabeleceu o texto mediante o cotejo entre o manuscrito
e a primeira edição do conto na revista Le Colibri.
(Flaubert, Mémoires d'un fou, Novembre et autres textes de jeunesse. Paris: Flammarion, 1991)
Imagem: Escritório do Livro